- Avó, tu ainda és do tempo do Street?
- Não, meu querido, eu não, mas o meu pai sim e ele contava-nos muitas
histórias dessa época. Mas, olha, eles não lhe chamavam isso. Pelo que percebi,
não lhe chamavam nada. Andavam simplesmente na rua, livremente, sem condições.
- Ele não te estaria a enganar, avozinha?
- Não, não, o teu bisavô era um homem muito correto nisso. É verdade,
eles podiam andar na rua a qualquer hora, sair de casa, até ir a casas de
outras pessoas. Parece incrível que tivesse havido um tempo assim, mas é
verdade.
- O meu professor de História Demográfica, há pouco, enviou-nos um
bocadinho da primeira metade da história do séc XXI e disse que, antes de
revelar todos os detalhes, gostava que contactássemos familiares que pudessem
testemunhar alguma vivência. O que é que me podes dizer?
- Para além de todas as histórias que já te contei posso-te dizer que
tudo começou com um vírus que criou uma onda de contágio e mortes pelo mundo.
- O meu professor disse que tinha havido 5 fatores que determinaram a
vida interior.
- Pois, meu anjo, isso não sei, apenas que começou com um vírus e
depois vieram as desconfianças internacionais. Depois, quando surgiram as
representações holográficas, nunca mais saímos de casa. Ele disse que eram
cinco, tens a certeza?
- Sim, tenho aqui os tópicos, só não tenho as explicações e era nisso
que queria que me ajudasses.
- Então diz lá os nomes, que eu ajudo no que puder.
- Pronto, os nomes são, por ordem: Virológico, Fronteiriço,
Holográfico, Subsistente, Vitral.
- Tens de entregar isso quando?
- Daqui a 3 dias.
- Então olha, fofo, a avó vai ali buscar os discos rígidos onde estão
guardadas as memórias da família e já falamos... vai lanchar, anda, que ainda
não comeste nada de jeito.
Informação sobre informação, pastas sobre pastas, documentos sem nome
específico, fotos misturadas com vídeos. O disco rígido onde estavam
armazenadas as memórias familiares mais parecia um cenário de acumulador.
Todos sabemos que a fronteira entre um colecionador e um acumulador é
ténue e nisto da informação tecnológica facilmente se cai na acumulação. O seu
neto, que é Gestor de Informação (GI), já a avisou várias vezes: avó, se
demorares mais do que 1 minuto a encontrar um ficheiro que, ainda por cima,
sabes como se chama, contacta imediatamente um GI, que estás em pleno estado acumulador.
- André, anda cá à avó. Preciso dos teus préstimos. Preciso que me
organizes tudo o que aqui está por anos.
- Referes-te à data de modificação ou de criação?
- De criação, claro.
O neto aproximou-se do monitor e levou as mãos à cabeça.
- Isto tem milhares de documentos, avó.
- Eu sei, meu querido, fiquei de ir arrumando em pastas, mas
esqueci-me completamente do assunto e julgo que há mais de vinte anos que não
tocava nisto.
- Com tanta coisa, preciso de um dia, pelo menos.
O André, que tinha agora 32 anos, era GI desde os 15. Desde pequeno
que tinha este gosto por arrumar coisas, o que lhe valeu uma carteira
profissional aos 18, mesmo sem ter concluído estudos. Andava agora a fazer um
curso superior de Cultura Geral, na vertente de História, para ver se conseguia
cobrar um pouco mais.
Como era tarde e só no dia seguinte é que ia começar a organizar os
discos da família, pediu à avó para, ao jantar, lhe ir contando o que se
lembrava.
- Pois bem, a coisa começou com uma simples quarentena de uma semana,
que se transformou num estado de emergência nacional de 15 dias, para terminar
num alerta mundial anual, renovado 3 vezes. Andámos nisto passo a passo e as
coisas iam acontecendo gradualmente, como aquele exemplo do sapo na água
quente. Começou com o que se pensava ser apenas um vírus de uma determinada
estirpe. Vacinas foram sendo criadas, mas nenhuma ia a tempo da erradicação
total, dadas as constantes mutações verificadas.
- E depois desses anos iniciais?
- Quando as mortes, apesar das precauções, atingiram um nível
populacional considerável, os governos decretaram a IT (Interiorização Total)
até que o assunto estivesse resolvido... ainda não está.
- E a questão das fronteiras, avó, lembras-te de ouvir falar nisso?
- Sim, lembro. Ainda era pequena quando tudo começou, mas o meu pai
contava-nos muitas coisas...
Nesse momento ouviu-se um BIP e o André levantou-se e foi ver quem é
que estava no holo-screen. Era só uma amiga que lhe deixava a fórmula de um
prato novo. Já há um tempo que, com a impossibilidade de criar alimentos
naturais, a comida deixou de ter nomes razoáveis. Antes, um prato que tivesse
galinha chamava-se Galinha-com-qualquer-coisa, se o ingrediente principal fosse
tomate, seria uma Tomatada-de-qualquer-coisa. Agora tudo se chama o que
quisermos, já que não há nada de natural na alimentação.
- Era a Eva. Deixou-te uma refeição.
- Para mim, porquê?
- Porque ela sabe que tu sofres dos ossos e que agora há falta de
peças para pessoas da tua idade.
- É muito querida a Eva, mas vamos às fronteiras?
- Sim, ao fator Fronteiriço.
- Então, ele veio logo a seguir. Pensando bem, tu já tinhas nascido
quando aboliram definitivamente os países. Tens memória disso?
- Não, avó, acho que tinha 5 anos quando isso aconteceu.
- Pois, mas este desfecho veio na sequência da incapacidade em
controlar o tal vírus original. Logo no início houve desconfianças de que o
vírus tivesse sido criado por um só país, depois percebeu-se que o vírus
original até foi o menos mortal de todos. As mutações que lhe seguiram foram
absolutamente devastadoras. Chegámos a ter 14 variantes do vírus em simultâneo.
- Mas, afinal, chegaram-se a descobrir as origens dos vírus?
- Algumas quase que sim, outras nunca se soube, apenas suspeitas. O
que é certo é que a quantidade de países envolvidos na criação de variações foi
tão grande que de repente já ninguém era inocente.
- Não se chegou a condenar ninguém?
- Ninguém. Só julgamentos cansativos, morosos e inconclusivos. A
quantidade de acusações em todas as direções quase levou a uma guerra entre
países.
- Foi nessa altura que surgiu o movimento Procix?
- Sim, o juiz sul-americano Fernando Procix foi o impulsionador deste
movimento pela abolição das fronteiras, mas ele apenas constatou a inutilidade
de haver países. O mundo fez-se a si próprio. Repara, de que nos adianta
pertencer a um país se nem saímos de casa, se nem vemos com os nossos olhos o
tal país a que pertencemos?
No dia seguinte, o André começou o dia de volta dos discos da avó.
Pelas onze teve de interromper porque tinha uma reunião de trabalho.
Na sala ao lado, o holo-screen já pululava de gente. Os novos modelos
de Reposicionamento Virtual possibilitavam ilimitadas opções cromáticas e,
claro, estavam todos a divertir-se com as suas cores naturalmente impossíveis.
- Eh lá, que é isto, dois amarelos, uma rosa e uma vermelha?
- É a novidade, André, depois passa-lhes. Anda, escolhe uma cor
também, entra na brincadeira. Ficava-te bem um tom azulado.
- Hoje não, Gino, noutro dia experimento. Vamos ao trabalho, que eu
estou a meio de uma investigação familiar. A propósito, alguém sabe exatamente
como é que começou isto de nos encontrarmos holograficamente?
- Penso que foi depois da Interiorização Total, há uns 100 anos.
Quando se assumiu de vez que nunca mais nos íamos encontrar fisicamente, a
comunicação virtual ganhou um vigor nunca visto. Surgiram os primeiros CTP
(Canais de Transmissão Presencial). Como as pessoas já se tinham visto
anteriormente, havia um grande desejo de reencontro visual, pelo que eram as
suas próprias imagens que apareciam nos ecrãs.
- Pois é, nunca tinha pensado nisso. As pessoas conheciam-se de antes
do isolamento. Deviam ter saudades da imagem dos amigos.
- Devia ser emocionante voltar a ver alguém.
- Eu não sei se era assim tão bom. Tinhas de te sujeitar à tua imagem
natural.
A avó do André, que andava por perto, não resistiu e entrou na sala.
- Bom dia, meus queridos, dão-me licença?
- Dona Antónia, faça favor, estávamos mesmo a divagar sobre o passado.
- Pois, eu reparei. Quando era pequena, ainda vivi esse matar de
saudades da imagem alheia. O meu pai tinha um CTP com alguns amigos e foram-se
acompanhando. Comentavam os cabelos brancos, as rugas e divertiam-se com isso.
- Então a D. Antónia ainda chegou a ter um holograma realista?
- Sim, o meu pai gostava de me mostrar aos amigos. Gabava-me a beleza
e orgulhava-se disso. Só aderi aos avatares quando comecei a estudar, o que no
meu caso só aconteceu aos 15.
- Aos 15?
- Sim, as primeiras décadas da Interiorização foram bastante caóticas,
entre os que queriam organizar-se a partir deste novo paradigma e os que
queriam apenas transferir procedimentos, mantendo toda a estrutura social.
A Dona Antónia saiu da sala do holo-screen deixando a reunião do neto
prosseguir.
A casa onde viviam estava colocada na margem de um rio. Tinha a
particularidade de se transformar numa experiência subaquática todos os anos,
aquando das cheias. Tendo sido construída com esse fim, era completamente
impermeabilizada e tinha dois grandes janelões que, uma vez debaixo de água,
permitiam observar toda a vida fluvial.
Nesta altura do ano, o nível do rio já chegava quase ao teto, o que
deliciava a D. Antónia. Gostava de se sentar no sofá e observar os peixes, as
plantas e, como lhe chamava, os perdidos e achados. Havia sempre coisas
inesperadas a passar, levadas pelas correntes ou simplesmente atiradas ao rio,
peças de mobiliário, pequenos objetos. Também era grande a variedade de coisas
que as trombas urbanas deixavam escapar para dentro de água.
A entrada e saída de tudo, numa casa, acontece através das trombas
urbanas, assim chamadas umas aberturas redondas nas paredes, por onde se
recebem as encomendas do exterior e, invertendo a função, se aspira tudo o que
for para o exterior.
A reunião terminou. O André veio ter com a avó.
- Não sabia que só tinhas começado a estudar aos 15. Agora percebo
porque é que sempre apoiaste a minha decisão de adiar os estudos.
- Sim, meu querido, isso de termos de fazer tudo na mesma altura é um
absurdo. Tendo em conta que, com este sistema de peças, conseguimos prolongar a
vida até aos 150, não faz sentido manter as mesmas balizas.
- Bem, vou regressar à gestão dos discos da família.
- Traz o monitor para aqui, assim posso-te ajudar. Pode haver algum
documento que não esteja datado e, além do mais, já não toco nisso há tanto
tempo, que acaba por ser uma forma de matar saudades.
O André lá foi buscar o equipamento e instalou-se em frente à
janela-aquário, ao lado da avó que, no entretanto, aconchegada numa manta
quentinha, adormecera.
Lá fora viam-se alguns peixes, uma enguia e, arrastada pela corrente,
uma porta com postigo.
Um postigo – pensou – há anos que não via uma porta assim.
Analisando a documentação em causa, André optou pela técnica da
duplicação da informação, porque lhe pareceu que havia ali dois tipos de
índices decrescentes a ter em conta: o geográfico (que organizou nas
terminologias antigas de país, distrito e concelho) e o cronológico (ano, mês,
dia).
Logo ao fim das primeiras horas copiou para uma pasta uma série de
documentos do início da Interiorização Total, porque encontrou um padrão
informativo que o deixou curioso.
Um espreguiçar lânguido marcava o despertar da D. Antónia.
- Ainda bem que acordaste, avó, queria justamente perguntar-te isto.
Porque é que, no período 2020/2050, há tantas referências ao Japão nos
documentos do bisavô?
- Abre aí um ou dois, para ver se me lembro.
Enquanto o neto espalhava documentos pelo monitor ela disse,
abruptamente:
- Hikikomori! Já me lembro, os Hikikomori.
- Como? Quem são esses?
- Para compreendermos temos de ir ao contexto. Estávamos a iniciar
isto de nunca mais sair de casa. Como sabes, sempre que há mudanças sociais, há
sempre inspirações por trás. Só que desta vez houve uma pequena revolução de
mentalidades.
- É claro que houve uma alteração dos pensamentos. Não foi uma simples
mudança de casa, ficámos nela definitivamente. Não percebo é o papel do Japão
no meio disto tudo.
- Deixa-me explicar-te de outra forma. Sempre tivemos pensamentos
sobrenaturalistas, desde as correntes new-age às religiões tradicionais. Desta
vez, contudo, precisávamos de exemplos, de modelos, de algo que fosse parecido
com a nossa nova situação. Como não havia nas religiões nada que se
assemelhasse à novidade que vivíamos, procurámos no mundo inteiro alguma âncora
que nos desse sentido à vida. Foi então que o mundo deu atenção a um fenómeno
que já se vivia no Japão.
- Os tais Hikikomori? Mas é o quê, uma seita?
- Não, nada disso. Havia, ainda antes da Interiorização,
aproximadamente 800 mil asiáticos (maioritariamente japoneses) que se
enquadravam nesta definição.
- E qual é a definição?
- Adolescentes que voluntariamente não saíam de casa. Chegavam a levar
anos enfiados no quarto.
- Ah, agora percebo. Encontrei nos documentos do avô a referência a
recolhas de entrevistas. Foram feitas a essas pessoas, os tais Hikikomori?
- Sim, quem melhor do que eles, voluntariamente isolados, para nos
elucidar sobre os prazeres, estratégias e motivações do celibato social?
Estas últimas informações da avó despertaram no André certas
curiosidades para cuja satisfação teve de meter a Universidade Novos Paradigmas
(UNP) ao barulho. Ligou para lá e aguardou resposta holográfica.
A UNP, balaústre do conhecimento contemporâneo, é uma instituição de
especialização superior (assim se denominam tecnicamente as antigas
universidades). Tendo recentemente comemorado o seu 100º aniversário, a UNP
celebrizou-se mundialmente pelos seus cursos de “combined learnings”,
especializações em duas áreas, combinadas “pelo desejo e pela necessidade de
cada ser humano”, assim se lê na página do instituto. Tendo como ponto de
partida a capacidade multipotencial de cada um, a UNP possibilita a cada
estudante a combinação entre uma área que mais facilmente lhe permita autonomia
financeira e outra que mais naturalmente o satisfaça, sendo que, em muitos
casos, as duas não andam de mãos dadas. Há o caso emblemático do atual diretor
geral da UNP, ex-aluno da casa, especializado em Astronomia e Têxteis.
Na página da UNP é possível fazer um pedido de conferência com um
técnico. Assim, tendo selecionado a opção de Psicologia, apareceu-lhe,
justamente, a sua amiga Eva, especializada em Psicologia e Nutrição.
- André, que surpresa. Ainda andas a fazer o tal trabalho de que me
falaste ontem?
- Olá, Eva, sim e de cada vez que avanço deparo-me com novas questões.
- Então diz lá, pode ser que te possa ajudar. Estás a trabalhar a
primeira metade do séc. XXI, não é?
- Sim, e fiquei a pensar se não haverá registos de problemas
psicológicos associados aos primeiros tempos da Interiorização.
Após alguns minutos...
- André, encontrei bastantes relatórios desse período, motivados pelo
repentino internamento das populações. Há registo de tiques comportamentais
relacionados com autismo, abulomania, claustrofobia e acribomania.
- Autismo e claustrofobia conheço, podias-me explicar as outras?
- Resumidamente, a abulomania é uma grande incapacidade em tomar
decisões (motivada, naquele contexto, pela incerteza generalizada pelo futuro)
e a acribomania é a necessidade extrema de ter tudo muito bem organizado
(também derivada do facto de as pessoas se virem, de repente, num universo
reduzido de espaço e começarem a dar importância a detalhes da casa que, noutro
contexto, não teriam importância nenhuma).
- Eva, ainda bem que foste tu quem apareceu, porque há um outro fator
que eu tenho de desenvolver no trabalho, que é o Subsistente e como tu também
és nutricionista...
- Bem, sei algumas coisas, pouco rigorosas, sabes que não sou
propriamente uma especialista em História.
- Imagino que tenha havido momentos intermédios até ao que praticamos
hoje.
- Exatamente. Tudo começou pela necessidade de alimentar as
populações.
- Os sistemas de produção e distribuição do tempo do Street devem ter
ficado afetados.
- Todo o processo coletivo de alimentação teve de ser repensado e,
enquanto esgotávamos as reservas e espremíamos o que ainda era possível do
sistema antigo, as movimentações, pragmáticas e ideológicas, foram acontecendo.
- Rapidamente?
- Sim, acabou por ser fácil, pois as pessoas foram confrontadas com a
impossibilidade de ir ao exterior adquirir o que precisavam. Quando a
existência está verdadeiramente em jogo, os devaneios do pensamento caem por
terra.
- E como chegámos a isto de só bebermos?
- A água foi dos poucos recursos que nunca esteve em perigo nas nossas
casas. Além do mais, grandes campanhas a favor da liquidificação da comida
salientavam a vantagem da digestão facilitada, de nunca mais precisarmos de
dentista, entre outras.
- Então é por isso que hoje os rostos tendem a ter uma estrutura
diferente?
- Sim, se esquecermos o ato de falar, pouco mais uso passámos a dar
aos maxilares. Os estudos recentes apontam também para um aumento dos rins,
dada a quantidade enorme de líquidos que passámos a consumir.
- Então passámos a ter logo a alimentação que temos agora?
- Não imediatamente. Primeiro foram os processos de decomposição da
alimentação em elementos de funcionalidade alimentar. Passámos a beber os
nutrientes e a conseguir, com fórmulas simples, criar em casa tudo o que o
nosso corpo necessita. Depois, sabes como é o ser humano, assegurada a vida,
venha o prazer. Os novos Labchefs começaram a comercializar os Suplementos
Sugestivos, que não são mais do que aditivos de autor e, tal como o nome
indica, sugestionam o palato.
- Ah, é deles então esta ideia de recuperar dos tempos a sugestão dos
sabores. Ainda ontem consultei um catálogo de um Labchef que tem disponíveis
sabores como, cito, “Açorda de Bacalhau”, “Ensopado de borrego” e um, que
encomendei, “Beringela recheada de cogumelos com coentros”.
Faltando-lhe ainda um último fator, Vitral, o André fez uma consulta à
legislação, antes de voltar a falar com a avó.
A impossibilidade de as pessoas se encontrarem fisicamente colocou em
cima da mesa um perigo mundial, a extinção da espécie.
Como o André já sabia, o início do isolamento foi complexo. Primeiro
havia apenas limitações de movimentos, no entanto, a quantidade de infrações
obrigou os políticos a endurecer o texto da lei. Há quem diga que o processo
evolutivo Quarentena, Estado de Emergência, Alerta Mundial e Interiorização
Total só aconteceu como resposta às reações sociais, uma vez que os primeiros
dez anos foram bastante conturbados, tendo havido grupos, oportunistas, a liderar
motins.
- Avó, depois do atentado dos juízes africanos, houve mais algum
acontecimento significativo?
- Não, querido, esse triplo homicídio, em 2025, foi mesmo a gota de
água. Virou-se o feitiço contra o feiticeiro. Ou seja, os autores do atentado
queriam mais liberdade de movimentos e acabaram por despoletar a Interiorização
Total.
- ... que aconteceu com a desculpa de controlar o vírus?
- Pois, essa é a razão oficial, apesar de sabermos que foi uma
retaliação. Lembro-te que, na mesma altura, foram ilegalizados os encontros
físicos.
- Não foi por isso que apareceram os GangMeetings?
- Exatamente, o teu bisavô, meu pai, conhecia alguns desses gangsters,
que, apesar de serem apenas pessoas da ordem social anterior que não se
conformaram com estas restrições, pelo método de ação não deixavam de ser
terroristas.
- Avó, vou-te ler um bocadinho da lei MoTA (Movimentações Tri-Anuais):
“Uma vez, sempre com um intervalo mínimo de 3 anos, é analisado o pedido de
movimentação de residência.”
- A lei MoTA surgiu para evitar a imobilização total dos cidadãos e
como forma de suavizar a força dos GangMeetings, cuja pressão e apoio social
era cada vez maior. Hoje, de 3 em 3 anos, podes pedir uma alteração de
residência. Se for aceite, és colocado em isolamento total durante um mês e
depois podes mudar de residência por um mínimo de 3 anos.
- Isto tem alguma coisa a ver com a reprodução?
- Sim e não. Inicialmente acabou por dar resposta à criação de novos
casais, que garantiriam a espécie. No entanto, mais tarde, com o
desenvolvimento cibernético da fecundação in vitro, deixámos de ter esse
problema. Hoje, basta enviares uma recolha de sangue para teres um filho legal.
Com o objetivo de finalizar a organização da informação familiar, o
André fez uma última inspeção ao disco original, antes de transferir tudo,
devidamente organizado, para um novo suporte atualizado.
Um pequeno ícone, no canto inferior do ecrã, insistia em manter-se,
apesar das renovadas tentativas de o eliminar.
Decidiu, então, decompô-lo em fragmentos e desencriptá-los,
conseguindo finalmente visualizar, ainda que a conta-gotas, os diversos
documentos escondidos.
A avó, curiosa com tal secretismo, acompanhava os progressos do neto.
Os primeiros documentos não passavam de mapas urbanos, facilmente
acessíveis numa pesquisa online, até que de repente:
- Avó, em que ano nasceste?
- Em 2035.
- Está aqui uma cédula de nascimento de 2045 com o teu nome.
- Espera, que eu vou buscar a que tenho.
Compararam ambos os documentos e verificaram que o de 35 tinha
autenticação do Registo de Nascimentos e o outro não. Por sua vez, no de 45
lia-se “omisso” em vez do nome da mãe.
Enquanto a avó procurava nos papeis que tinha consigo algum outro que
pudesse confirmar alguma coisa, o neto continuou a desvendar documentos.
- Avó, está aqui também uma lista de nomes e endereços que tem como
título apenas GM e onde aparece o nome do bisavô.
- GM são as iniciais de GangMeetings. Será...
- Achas que o teu pai pode ter pertencido aos GangMeetings?
- Epá, olhando para essa documentação, nem sei que pensar.
- Será que a tua mãe não é quem pensavas?
A avó levantou-se, sentia falta de ar. Chegou-se ainda mais à janela,
perdida nas suas dúvidas. O pai tinha pertencido a um grupo terrorista? A
pessoa a quem ela sempre chamou mãe, podia não o ser? A idade que celebrou toda
a sua vida estava errada? O que mais poderia revelar aquela pasta maldita?
- Destrói essa pasta.
- Como? Não queres saber mais nada?
- Para quê? Para confirmar que a minha vida se baseou em informação
distorcida, proibida? Para confirmar que o meu nascimento foi ilegal e que o
meu pai era um criminoso?
Para o André, saber que o bisavô pertencera aos GangMeetings, um grupo
que lutava contra o sistema, tinha qualquer coisa de romântico. Compreendia o
desespero da avó, acossada pela novidade de não ser, tecnicamente, quem
pensava.
Não destruiu a pasta. Voltou a encriptá-la.
A avó continuava a olhar o fundo do rio.
Pareceu-lhe ver um crocodilo albino...
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