Na quinta-feira, ao início da noite, reuni-me com os meus amigos e,
por convite deles e entusiasmo meu, acompanhei-os à reunião semestral da
Revolução dos Cozinheiros (RC). Para além deste trio nosgótico, nunca conhecera
outros vampiros.
Já na casa deles, cada um de nós leu mentalmente uma determinada
palavra e num piscar de olhos aparecemos no portão de entrada do reino de
Nosgoth. A dita palavra traduzir-se-á por "Legado de Kain", homenagem
ao primeiro monarca nosgótico, criador deste túnel de passagem que a Tena
oficializaria com a tal palavra de acesso.
Os meus amigos, por serem nosgóticos, podem usar o Legado de Kain em
qualquer altura do ano e não ficam ao portão, entram diretamente para a
Cidadela (magnífico palácio num planalto rodeado de água), onde são sempre
recebidos por um representante da monarquia.
Durante toda a estadia por lá fui acompanhado pela minha incansável
amiga gastroliterária, Patrícia Jean-Jacques Nosgoth (PJJ), que me foi contando
a história do seu reino, que me ia explicando o que ia acontecendo e com quem
falei sobre imensos outros assuntos. Memorizei, se não tudo, grande parte do
que ouvi. Isto de ser vampiro tem potencialidades de memória incalculáveis.
Relato.
Após a morte de Nordoom e nascimento da Tena, Kain foi coroado rei dos
Ancients e instalou-se naquela caverna de tamanho continental, chamada Nosgoth.
Fez desse submundo das profundezas, desse mundo de noite eterna em reino de luz
fluorescente, a base de crescimento da sua ninhada.
Durante muito tempo, nesse complexo de cavernas e túneis viviam, em
partilha, não só a ninhada de Kain, os Ancients, mas também uma variante do
homo sapiens que vivia no escuro. Esta variante que tinha, na compensação da
sua diminuta visão, um sentido misto de audição/ecolocalização extremamente
desenvolvido, dava pelo nome de Hylden e era liderada por dois irmãos, Moebius
e Mortanius (MM).
O tempo foi passando, a ninhada de Kain foi crescendo e isso fez com
que MM achassem que deviam exigir aos vampiros contrapartidas. Exigiram armas,
Reavers - as mais famosas da indústria bélica nosgótica.
Perante a imediata e óbvia rejeição de Kain, os Hylden, dentro dos
seus cultos à Tubarinora, criaram a Ordem dos Sarafans, um pequeno exército de
soldados de elite, com o propósito de deixar uma mensagem de força.
O assassinato de alguns Ancients revoltou Kain que lançou toda a sua
ninhada fortemente armada, no episódio conhecido como a Extinção dos Hylden.
Kain, então, por serem os únicos a habitar a caverna, mudou o apelido
de toda a sua descendência para Nosgoth e lá reinou até um terrível episódio da
história nosgótica, a Epidemia da Luz, que eliminou mais de metade do reino,
incluindo o monarca.
A Tena assistiu impotente durante algum tempo, mas depois conseguiu
encontrar uma forma de combater a epidemia, tendo conseguido preservar parte da
ninhada nosgótica, que entregou a um novo líder, o Rei Ottman, o antropocultor.
Este, profundamente religioso, apesar de ter lutado constantemente com
uma oposição interna que o acusava de ser obcecado com a ideia de se fechar ao
mundo (ao ponto de ter feito criação de humanos para alimentar o reino e assim
evitar que alguém saísse), criou todos os cultos (entenda-se conjuntos de leis)
que ainda hoje regem o reino e o definem.
Uma das suas maiores intervenções no seu próprio vírus nasceu da
necessidade que sentiu em manter um número sustentável de elementos no reino
(que ele estimou em 10 mil e que ainda hoje se mantém). Em polémica intervenção
num dos encontros milenares conseguiu convencer a Tena a esterilizar
psicologicamente toda a ninhada, só permitindo novos nosgóticos quando o número
populacional estivesse abaixo do limite estabelecido.
No fim do seu reinado ainda eliminou a forma hereditária de eleição do cargo de rei,
passando à democrática. Ou seja, continua a ter os mesmo poderes de um rei
absolutista e só termina antes de 5 milénios por decisão ou morte do próprio,
mas é eleito, não passa de pais para filhos, como nos outros reinos vampíricos
e humanos.
Neste momento o rei é Alcro. Progressista, o seu reinado está nas
mais ousadas frentes da relação entre vampiros e seres humanos, sendo ele próprio
um dos maiores entusiastas da RC. Por oposição ao ostracismo alucinado de
Ottman, Alcro reafirma o Legado de Kain, opção interditada durante o reinado
anterior, e promove, nos seus súbditos, a interação intermundos (atualmente
vivem no reino de Nosgoth uns 8000 vampiros, os restantes dois mil vivem no
mundo dos homens, à superfície, camuflados e integradíssimos).
Ele próprio emigra para a superfície e, enquanto Aleister Crowley, é
um caso de sucesso durante as cinco décadas em que convive com os humanos. (As
emigrações têm de ser interrompidas ao fim de 50 anos para evitar suspeitas.)
Num veículo de cobertura transparente, fomos conduzidos a um
palácio-anfiteatro no Bastião de Malek, onde houve reuniões diárias, lideradas
pela Tena e Alcro. (Não houve lugares fixos, como parece que há nos
encontros do milénio.)
No centro, dois Lendários (assim também se chamam os membros da Tena)
e Alcro davam e cortavam a voz enquanto comentavam as intervenções. O
maralhal todo à volta. Lá, tive oportunidade de ver pelo menos um de todos os
clãs vampíricos - a variedade é muito maior do que alguma vez imaginei.
Apesar de não participarem no processo imediato de exposição, há 3
clãs que, embora adiados, têm sempre um representante nos encontros semestrais,
que costumam ter à volta de 200 participantes.
Fiquei mesmo ao lado de um Gangrel. De capuz na cabeça e manto
comprido, nunca lhe consegui ver o rosto. Quando falou, esticou os braços
enormes, azulados. Na ponta destes, um misto de dedos e raízes ondulava majestosamente
enquanto a sua voz cheia de eco se fazia ouvir nas nossas cabeças pela Tena.
São biologicamente íntimos da natureza noturna, vegetal e animal, com a qual
comunicam, influenciam e na qual também se transformam. É esta relação de
empatia visceral com os animais que faz deles os únicos a ter relações de
amizade com lobisomens, conseguindo controlar a animosidade violenta que os
caracteriza, contra a qual até a temida besta Gangrel nada poderia.
Descendentes de Dracian (filho de Nordoom), os Gangrel dividem-se entre
os que são adorados (padroeiros de algumas das mais antigas famílias de ciganos
búlgaros) e uma fação recente, inicialmente feminista, de adoradores, neste
caso, das religiões humanas nórdicas. O principal dogma existencial gangrélico
é soltar, justamente, a besta que há em nós. No fundo, libertar desregradamente
os ímpetos assassinos que nos habitam. Por serem capazes de atacar até os seus
pares, são vagabundos solitários.
Percebe-se porque é um dos clãs adiados neste projeto de aproximar
humanos e vampiros.
O palácio anfiteatro onde nos reunimos, o Cinturão de Ragnarock, fazia
todo o esplendor do gótico jubilar com as tonalidades neon que enchiam o espaço
exterior de Nosgoth. A iluminação noturna, que lhe dava sabores de Tóquio e de
festa-trance, aumentava exponencialmente os efeitos da elevação que tanto
caracteriza este estilo, que para os seres humanos é medieval.
Fiquei a saber que alguns dos arquitetos pioneiros do período gótico
europeu foram mesmo emigrantes nosgóticos, bem como outros que vieram depois
para manter e consolidar, como é o caso de Lorenzo Maitani (só me lembro deste,
a memória Falhuc também tem os seus limites... ehehe).
A luz tenebrosa do interior fluorescente de Nosgoth, com os seus tons
arroxeados e shock, entra nos templos pelos vitrais e rosáceas, dando-lhes
leveza. Para isso também contribuem abóbodas elevadíssimas com o seu sistema de
arcobotantes e contrafortes. São tão altas as abóbadas que há nuvens internas
que lhe dão um ar ainda mais misterioso.
Aqui, ao contrário da versão humana do gótico, os vitrais e as
rosáceas não apresentam formas geométricas, mas são extremamente figurativos,
com imagens alusivas aos momentos da vida de Satanás, o grande inspirador. O
que também distingue o Cinturão de Ragnarock das catedrais góticas humanas é a
grande exuberância e requinte das inúmeras e criativas gárgulas e restante
estatuária grotesca, animalesca, demoníaca, aqui, sim, a celebrar os maus
espíritos.
Não estivemos sempre no Bastião de Malek, fomos convidados várias
vezes a fazer visitas guiadas ao reino no tal veículo e sem nunca o poder
abandonar, também pela nossa segurança. Nem todos os nosgóticos são pacíficos,
tanto que só a alguns e após rigorosos procedimentos seletivos é dada permissão
para sair do reino.
Nosgoth é um local onde até os mais ateus como eu sentem algum sentido
de divino, por mais sugestionado que seja. Há edifícios com abóbadas e
pináculos a 3 e 4 km de altura que, neste caso, são mais iluminados do que a
base, já que a grande fonte de luminosidade fluorescente vem dos tetos da
caverna.
Reparei que nenhum dos edifícios religiosos tinha transepto, ainda
pensei que pudesse ter a forma de cruz invertida, já que o satanismo rege a
vida por lá.
Quando aflorei a questão com a PJJ, ela lembrou-me que Cristo é uma
figura com dois mil anos, o período Ottman é bem mais antigo - daí que o termo
anticristo nunca seja usado em lado algum, por não fazer qualquer sentido.
Disse-me que não têm uma religião de oposição a nenhuma outra. É mais uma
estrutura cerimonial de rituais de valorização.
Como é uma caverna fechada, a humidade anda no ar constantemente e
imaginei logo um local bafiento, insuportável. Pois, estranhamente, quase não
há cheiros, há qualquer coisa na atmosfera da gruta que neutraliza os cheiros.
Cheguei a pensar que estava com o nariz entupido, mas perguntei ao Conde e ele
disse-me que era mesmo assim.
Ontem, quando regressámos, terminou o período de 3 dias seguidos em
que o Legado de Kain está operacional, depois é selado aos estranhos até ao
semestre seguinte. Coincide sempre com uma época festiva e há mercado. É o
único momento em que os vendedores de outros clãs de vampiros podem montar
tenda e expor os seus produtos. Vão de utensílios do quotidiano a produtos
tecnológicos, de vestuário a medicamentos, mas o mercado das armas é o maior
espaço de todos.
Durante estes dias todo o programa é organizado pela monarquia e todos
os dias há espetáculos de comemoração e celebração da divindade que se
comemora. Tudo em Nosgoth é organizado por cultos ao grande padroeiro Satanás
(autor da frase que se lê em todas as portas: A verdade afasta os fracos!) e a
outras 15 divindades menores dividas em três categorias: da mente e da
sabedoria (APus, Ares, Hachiman, Marduk, Ogum), do todo que nos rodeia (Izinag,
Karora, Manitu, Odhin, Oziris) e da vida e da morte (Altjira, Azazel, Chu Jung,
Lúcifer, Quetzalcoatl).
Mas nem tudo é público durante as festas. Há uma magna assembleia só
para autóctones, onde mais de metade dos nosgóticos participa e que discute as
leis que promoverão o deus em causa e avalia o que foi feito desde a sua última
celebração, já que são rotativas as comemorações.
Desta vez as festas foram em honra de Chu Jung, um dos deuses da vida
e da morte, neste caso, o deus do fogo que mata ou que o não faz. Vincou-me
aqui a PJJ a ideia de ter poder até para não o usar. Esta divindade tem uma
lenda que a conta como um guerreiro de uma pequena tribo antiga, que permitiu
que inimigos entrassem no castelo onde viviam e os exterminassem a troco de uma
bebida que o transformaria num dragão poderosíssimo. Já na sua forma draconiana
aterrorizou anarquicamente todo o mundo antigo até ser encontrado por Marduk,
que o ensinou a refletir, tendo-se tornado fieis amigos.
Este deus é muito importante em Nosgoth, por se celebrar dele o
exemplo de virtude na determinação. O seu modelo em como se deve abandonar tudo
por um sonho tem aplicações dogmáticas nos cultos e práticas de grande parte da
vida nosgótica.
Das conversas que fui tendo com a PJJ sobressaiu um gosto comum sobre
literatura, ela por convicção, eu por arrasto. Quer dizer, ela é mesmo
entendedora de toda a literatura, já eu gosto de todas as obras artísticas que
acumulem os adjetivos novo e revolucionário, por isso também conheço alguma
literatura.
Falámos de um livro que encomendei no quiosque 24 horas aqui da rua,
“Como eu gosto das nuvens / 3 poemas para sentir”, de Edgar Xisto.
Hoje mesmo, quando me dirigia para casa, ainda antes do sol se
instalar, passei lá e perguntei ao Sr. Joaquim se já tinha chegado a minha
encomenda. Já tinha. Comprei-a.
Esta procura pelo extraordinário nas artes tem ditado em mim hábitos
de leitura, principalmente, na imprensa que se dedica a estas questões. São
rotinas que gosto de manter, leio jornais de literatura, ouvejo programas de
música exploratória, consulto revistas de filosofia, enfim…
Desde o início do ano passado que, primeiro timidamente, depois
assumidamente, toda a imprensa literária se tem referido a um pequeno livro de
um autor praticamente desconhecido (parece que, afinal, já publicava coisas,
mas nunca ficção, nem com o seu próprio nome – estreou-se nisso do homónimo!),
de nome Edgar Xisto. Depois desta edição inicial, já publicou e apareceu em
variadas ocasiões.
Em todos os artigos que li sobre o livro (que é uma publicação de 3
poemas apenas) só encontrei um que o admirasse e que referisse um fator
mediático que pode ser significativo e que me fez adquiri-lo: o seu lado
revolucionário, entendido como a única justificação para toda a gente falar
dele (ainda que maioritariamente de forma depreciativa). Em suma, ainda que a
opinião que no geral se formou sobre estes poemas não seja muito favorável, o
certo é que há tantos livros que saíram e dos quais ninguém ouviu falar que
este tem de ser alguma coisa memorável. Pareceu-me um bom investimento.
Realmente, pensado bem, há muito tempo que não via tamanha excitação
sobre um livrinho só com 3 poemas. Os opinion makers de outras áreas também
comentam a obra – ainda que sejam menos cruéis que os críticos literários. Saem
artigos aqui e ali sobre a sua publicação. Um cronista de uma revista de
filosofia e sociologia reparou na forma como este “Como eu gosto de nuvens” se
impôs no nosso quotidiano.
Os primeiros 200 exemplares foram feitos em fotocópia, sem capa nem
nada, só mesmo assim, uma folha A3 dobrada ao meio, 4 páginas somente (capa + 3
poemas). Não foi vendido, mas oferecido a conhecidos do autor. Este ofereceu um
conjunto de 5 exemplares a cada pessoa e pediu-lhe que oferecesse os restantes
4. Este tipo de distribuição gerou algum secretismo e mistério. Havia quem
afirmasse possuí-lo, quem já o tivesse visto, quem tivesse a certeza de ser
tudo mentira, enfim, um quase mito.
Traz agora uma introdução feita pela Doutora Khalidah Janan, uma
senhora multifacetada, de origem marroquina (com nacionalidade portuguesa),
cozinheira louca e investigadora da UNP.
Gosto dela, conheço-a desde que abriu o bar/restaurante da biblioteca
e até fiquei confuso quando um dia fui assistir a uma conferência na UNP sobre
Siglas (um tema curioso que falava da relação promíscua entre os mecanismos
mentais que levam à criação das Siglas e Acrónimos e os que levam à redução
abreviada que se generaliza na comunicação contemporânea, produzida
massivamente nos gadgets eletrónicos que nos acompanham) e reparei que era ela
a autora do estudo.
Só então soube do seu currículo académico. Fui ver a dita conferência
pois parece-me algo fora dos cânones isto de valorizar o streetwear
linguístico. Andou a dissertação à volta do facto de no início da escrita
portuguesa não haver uma normatização rígida, pelo que se escrevia de forma
instintiva e agora, tantas voltas e tantas normas e tantos acordos depois,
voltamos, instintivamente, ao mesmo.
Toda a agitação mediática com o Edgar Xisto deve ter chamado o
suficiente à atenção pois nem demorou um ano até sair uma edição oficial do
livrinho, já com capa grossa e tudo. Uma editora viu o potencial da iniciativa
e investiu nisto da “poesia para sentir”. Já vai na 5ª edição. Como é barato e
está na moda, toda a gente parece ter enlouquecido e quer ter um exemplar.
Copio para aqui a introdução e o poema 3, exemplificativo:
-x-
Como eu gosto de nuvens
3 P o e m a s p a r a s e n t i r
E d g a r X i s t o
Introdução
Sabemos de antemão que no ato de ler estão compreendidas várias
frentes com que o leitor se relaciona com o texto: a fonética, a semântica, a
social, a emocional, a ideológica, a estética, a sensorial, etc., envolvidas em
processo de descodificação e reflexão, o que despoleta em cada pessoa uma
experiência única enquanto leitor.
Se essa unicidade de leitura apresenta variações mais subtis em textos
de índole objetiva, como uma declaração de finanças, num nível poético as
realidades interpretativas-singulares monopolizam as outras frentes que o
ato de ler implica.
O desejo deste Gosto pelas nuvens é associar-se a fenómenos como
alguma poesia vanguardista e de cariz experimental, sintomática dessa relação
cada vez mais estreita do Homem concreto com o texto abstrato. Na sua conceção
está o objetivo definido que empurra o poema para esse campo da abstração, que
exacerba o lado do sentir nisso de ler e que, por exemplo, se equivale à
relação que estabelecemos com um quadro abstrato, onde a sensação se sobrepõe à
figuração.
Ler não no sentido de descodificar, ler não no sentido de refletir,
mas ler no sentido único de sentir, consolidando a explosão de todos os fatores
relativos. A escrita como motor do indizível, a sintaxe como motor do
indecifrável, a palavra como motor de sensualidade improvável.
Como quem escolhe as cores ou notas com que pretende conceber uma
determinada atmosfera, as palavras foram retiradas de obras de autores,
cumprimentados e identificados nos títulos, organizadas em Pentátrios (forma
poética original do Edgar composta por uma quintilha, uma quadra, um terceto,
um dístico e um monóstico), com o objetivo de pintar paisagens lexicais em
verso, que num processo de ciclo-retorno nos permitam voltar aos universos dos
seus autores e senti-los, no sentir que nos é.
Khalidah Janan
-x-
Olá, Ray Bradbury
(poema 3)
cá Cecy
ele penetrar
se estou
rapidamente virou
que ficou
porque volveu
oh pretos
ali todos
eram pulmões
sem vocês
sim mas
o qualquer
não mulher
do oculto
como no
Assim que falei à PJJ da minha intenção em adquirir o livro, ficou
entusiasmadíssima, pois anda a acompanhar o trabalho do Edgar Xisto de forma
mais sistemática do que eu.
Contou-me que o segue desde que lera numa entrevista sua (das poucas
que deu) que os movimentos realistas eram uma desculpa para a falta de
imaginação e que considerava uma aberração lermos um texto e identificarmos o
seu autor, pois para ele isso indicaria uma incapacidade em fugir à prisão do
estilo próprio.
Uma vez que se mostrou tão conhecedora perguntei-lhe se o sabia autor
de haikus.
Contei-lhe de uma vez em que fotografei um poema assinado por EX num
WC público, que era algo fora do comum nesses ambientes, pois, quando há
literatura, ou é comprometida (política ou eroticamente), ou são citações ou
poemas rimados, não costuma haver esta densidade poética.
Sempre senti nos haikus um misto entre ingenuidade no sentir e
intelectualidade no conter. Têm uma estrutura métrica fixa (17 sílabas
distribuídas por 3 versos de 5, 7 e 5).
Nada em lado nenhum classificava estas estrofes balneares como haikus,
no entanto, não foi difícil encontrar nelas a mesma pureza emocional e a mesma
racionalização poética que nos tradicionais textos nipónicos. Ainda que a
natureza não seja aqui o tema dominante, a forma natural e algo minimalista de
viver o quotidiano urbano, que me transmitiram estes textos, remeteu-me logo
para o universo japonês.
No final do poema a assinatura resumia-se a duas letras: EX. No
momento ainda não me tinha apercebido do fenómeno Edgar Xisto. Lembro-me de
pensar se seria um ex-qualquer-coisa, se seriam as primeiras letras de uma
palavra, (extintor, exército, etc.), ou, afinal, as inicias de um nome. A
assertiva opinião da PJJ, assim que viu as imagens, leva-me a crer que é mesmo
um texto do Edgar. (Enviei-lhe uma cópia da foto.)
Aqui deixo os haikus, supostamente, de Edgar Xisto:
Carros: o cronos
que se perde quando
se andava a pé.
Formas de elegância
em montras expostas
ao vigor do transeunte.
Macio e aveludado
com sabor decidido
em forma de hamburger.
Um estojo de pintura ou
máscara imprescindível
para sorrir.
Em servidor de televisão
a guerra das audiências
anima-me a alma.
O dia em tempos.
O invento em dias
bem cronometrados.
A natureza: invasão de mensagem
e teias de aranha
em estante de sala.
Gravei-te uma pen.
Perdi-me na vida,
mas ganhei-te.
A PJJ é uma entusiasta do Edgar e diz que fica entristecida com as
vozes críticas que se levantaram para o desvalorizar. Segundo ela, parece haver
algum medo do establishment relativamente a tudo o que não corresponde aos seus
padrões de qualidade, já que insiste em aplicar a tudo os seus métodos de
qualidade estagnada.
A forma artística do Edgar vai muito além da frase escrita
tradicional, vai ao nível da ideia potencialmente dominadora, do ideal
interartístico, nunca do padrão de referência. Ainda, ela afirma que esse tipo
de pensamento crítico só pode ter lugar num padrão que se distancie da ideia de
que ser artista é, essencialmente, ser livre e que, nisso de ser livre, não há
regras impostas, sob o risco de não se ser livre mesmo.
A exploração não tem de ser determinada por questões intelectuais, por
ambientes concetuais, pode ser apenas constatação da sua singularidade. Não tem
sequer de ser compreendida e, aliás, é da sua incompreensão que nasce,
justamente, o novo.
A editora que editou o Edgar é a mesma com que a PJJ anda a trabalhar
num pequeno glossário de gastroliteratura fantástica.
Contou-me que dividiu o livro em duas partes, a primeira dedicada aos
Star Woks (que abordam a coisa numa perspetiva mais tecnológica: cozinha
experimental, molecular, científica, alienígena, etc.) e a segunda dedicada aos
Tridentinos (muito épico e poético, pratos escuros, com muito sangue, cabidelas
e tudo mais). Ela está encarregue de fazer o levantamento do vocabulário que já
se tornou emblemático na área tridentina da gastroliteratura.
Pedi-lhe que me explicasse melhor e ela deu-me alguns exemplos de como
se podem transformar receitas originais em variantes tridentinas de segunda
geração (na primeira eram todos cozinheiros e alguns escritores, na segunda são
todos escritores e alguns cozinheiros).
Registei alguns exemplos:
Batimentos Cardíacos, em vez de Minutos.
O mundo nasce, em vez de Começa-se por.
Seduzir, em vez de Misturar.
Cetro, em vez de Colher.
Eras, em vez de Dias.
Hipnotizar, em vez de Fritar.
Matrimonializar, em vez de Juntar
Massajar, em vez de Amassar.
E bem amassado estou que acho que vou dormir dois dias seguidos.
Assim foi
Marcos Alandro Falhuc
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