Hidros
Pacífico Maria Figoldes
Hoje estou em Vila Nova de Santo André.
Desloquei-me cá para a fazer a cobertura jornalística da inauguração
de uma loja da cadeia de estabelecimentos hidrossapiens low-cost Total-Blue, ou
simplesmente TB: última gama de implantes guelrianos, roupa epidérmica com
funcionalidades extraordinárias (sensores de movimento, ecolocalização, etc.),
enfim, negócio de piscinas revitalizado pela EME local.
Há também catálogos de moradias subaquáticas - fiquei a saber que já
há países a promover vendas definitivas. Até aqui só havia comunidades com
habitações de domínio público (projetos científicos, capitais nacionais
subaquáticas, instalações militares, etc.) e de venda temporária (grupos
privados empresariais, férias, estudantes, associações, por aí). Sempre ouvi os
governantes dizer que nunca iriam permitir vendas definitivas, “para evitar o
direito individual no espaço coletivo e…” conversa! Aí estão elas, começaram a
ver que dava dinheiro…
Gostei do espaço. Estavam lá vários implantados. É incrível, não se
nota quase nada. Os primeiros eram horríveis, grotescos.
Choveu o dia inteiro. Cheguei em cima da hora, fui à inauguração. Teve
comes e bebes, vim de lá jantado. Queria visitar amigos, mas, como chove que os
deuses a mandam, vim diretamente para o hotel (ainda fico uns dias, amanhã logo
faço uns telefonemas). É cedo, mas fico já por aqui. Esta temática da loja
fez-me apetecer arrumar algumas ideias, por isso vou escrevê-las.
Tenho aqui no mail os documentos ideais para me ir documentando.
A ver se consigo remontar ao acontecimento significativo mais antigo.
Talvez seja melhor oficializar a génese pelo facto mais mediático que,
por ser um tão dinâmico ambiente científico, acabou por ser o cenário ideal
para o desalinhar do pensamento.
Então vamos lá.
Na década de 1950, Jacques-Yves Cousteau despediu um dos cientistas do
seu famoso barco-laboratório Calypso. Na altura, uma divergência familiar
justificava-o perfeitamente, já que o engenheiro despedido acabara de se
divorciar da irmã do capitão. O contexto serviu na perfeição para compreender o
afastamento do dito cientista, pelo que não foram feitos sequer quaisquer
comentários. A vida seguiu.
Anos mais tarde soube-se da verdadeira razão. Ética profissional
motivou a grande cisão que afastaria os dois brilhantes cientistas do mar. O
engenheiro afastado derivava o seu trabalho numa “alucinação anti-natura em
fundir pessoas com peixes”, citando Cousteau. Afirmava que certas companhias o
tinham influenciado.
Numa entrevista, o engenheiro comentou a presença de um misterioso
“inspirador” que o terá orientado. Cito: “abriu-me os olhos e mostrou-me a
verdadeira missão da ciência.”
Como o Calypso já tinha então atingido níveis significativos de
notoriedade, os nomes dos membros da equipa de Cousteau eram conhecidos do
grande público. Assim, ainda que durante uns anos nunca mais se tivesse ouvido
falar do cientista expulso e, portanto, nada se soubesse das suas
investigações, o seu nome foi imediatamente identificado quando reapareceu, já
na década de 1980, ao lado de uma multinacional.
Os altos e muito divulgados patrocínios desta empresa levaram à
mediatização da equipa de cientistas que ele liderava e só então se soube das
suas verdadeiras intenções: a criação de dispositivos-próteses respiratórios
que permitissem ao ser humano, não só permanecer, mas mesmo viver dentro de
água.
Os primeiros engenhos criados eram enormes, pesados e permitiam
pouquíssima mobilidade e uma muito reduzida autonomia. A sua divulgação não
provocou ondas de entusiasmo como a equipa achava que merecia, devido,
principalmente, à sua deficiente maleabilidade.
Para tentar superar o fracasso, juntaram-se à já diversificada equipa
científica elementos oriundos da genética e da nanotecnologia, contribuindo
para a funcionalização das ideias. A concentração passou, gradualmente, do
objeto a utilizar ao sujeito utilizador e, em vez de terem prosseguido esforços
apenas no melhoramento dos gadgets respiratórios, alargaram a sua esfera,
prioritariamente, à manipulação do ADN hereditário do utilizador,
simultaneamente, a todas as frentes implicadas no viver subaquático (habitação,
alimentação, roupa, organização social, etc.).
Como desde cedo me mostrei interessado em colaborar com o Movimento
Hidrossapiens (MH), desde cedo acompanho os desenvolvimentos a si associados.
Tenho informações que são exclusivas de um pequeno grupo, mas que dentro de
muito pouco tempo pertencerão, certamente, ao domínio geral (tendo até já
começado a escorregar das nossas mãos) dado o número cada vez maior de pessoas
envolvidas. Apesar de conseguir, a médio prazo, prever a generalização desse
conhecimento (ainda que não consiga prever a reação geral, suspeito apenas),
por enquanto ainda somos poucos os que o partilhamos.
Integrei o MH pela mesma razão que ainda hoje, ainda que à distância
(desde o acidente fiquei radicado na casa da família, em Arganil), me faz
acompanhar e defender fervorosamente este rumo da ciência: a recriação do Homem
pelo Homem.
Convém referir que, enquanto a evolução dos acontecimentos se manteve
dentro dos parâmetros científicos, nunca houve nenhum tipo de descontrole e os
limites da experiência geral sempre se encontraram bem definidos. Com a chegada
do Sarfa-Lap tudo mudou.
Para introduzir o Sarfa-Lap nesta história tenho de recorrer a
informações que não pertencem ao domínio público.
Começo por referir que não seguimos os termos que a História
consensual manuseia. Não vale a pena desenvolver todos os pontos, por isso,
resumidamente, o período que nos interessa é a passagem da última fase da era
Mitológica à primeira da era seguinte, a Dispersante.
Ora, no final da era Mitológica, era notória a deterioração na relação
entre seres humanos e deuses. Houve um consílio divino que decidiu dar uma
última oportunidade ao Homem, mas não foi consensual a conclusão, sendo que a
fação derrotada, liderada por Hades, Atenas e Hércules, não aceitou a decisão
final, reagindo secretamente.
Este trio vencido uniu-se para criar uma divindade chamada Tubarinora,
com o propósito de ir a várias dimensões reunir os ingredientes genéticos para
a criação de um ser incontornavelmente antropofágico e sensorialmente superior
ao ser humano, tornando-o presa. Assim nasce Nordoom, o primeiro vampiro.
Cumprido o seu papel, uma última conjugação de forças deste trio
projetou a Tubarinora para uma dimensão longínqua, para o planeta central, chamado
Karvatun Lap, de um sistema planetário sem luz própria, numa dimensão imóvel.
A condenação a esse ostracismo-exílio desolador levaria (na previsão
dos seus criadores) à sua lenta e gradual destruição. O que não aconteceu,
pois, lá diz o adágio, “a natureza encontra sempre um caminho” (deuses
incluídos, ao que parece).
Hades, Atenas e Hércules, embora a tenham conseguido “enclausurar”
numa dimensão obscura, subestimaram a própria divindade, pois não previram a
sua permanência nos tempos através da clonagem sublimada (processo de
partenogénese comum noutras dimensões, que permite que uma só criatura se
duplique, mas já conscientemente alterada, no sentido de melhor responder às
suas previsíveis necessidades).
Assim a Tubarinora se auto-procriou, dando origem a um povo que, por
portas e travessas, viria a chamar-se Pai Natal (PN).
Na ausência de qualquer necessidade de proteção, pelo total
isolamento, esta sociedade cedo perdeu as características violentas que tão
intensamente definiram a sua génese.
O tempo passou e os PN dominaram por completo o planeta e durante
gerações inteiras foram os seus únicos habitantes.
Na Terra, entretanto, desenvolveu-se uma variante humana subterrânea,
os Hylden, com mecanismos termorreguladores singulares, com uma endotermia
muito autossuficiente, permitindo que tudo se desenrolasse sem sol. Todo o seu
organismo baseava-se, não só numa amplitude térmica existencial moldável, mas
também numa dieta essencialmente à base de raízes de plantas
fotossintetizantes.
A dupla liderança desta raça humana, habitantes das cavernas mais
profundas, a dado momento decidiu criar uma elite guerreira a que chamou
Sarafans, com a qual se envolveu numa guerra devastadora contra um clã
vampírico, então chamado Ancients, liderado pelo mítico Kain.
Um episódio histórico conhecido por Extinção dos Hylden remete-nos
para o final terrível dessa guerra, levando-nos a concluir que a história deste
povo terminaria aqui. Sabemos hoje, por fonte segura, que não foi bem assim.
A Tubarinora sempre foi a entidade mitológica padroeira do bicéfalo
reino Hylden, inspiradora dos seus procedimentos bélicos. À sua divindade
faziam oferendas e criaram todo um sistema próprio de preces e rituais com que
a celebravam intensamente.
Convém referir que, pelo que sabemos, este será o único exemplo
cósmico de adoração oficial à divindade Tubarinora, atenção que esta não tem
nem sequer dos seus próprios, céticos, descendentes, os PN.
Depois, como é sabido, a veneração do sobrenatural é a única energia
que, de facto, alimenta os deuses, cujo reconhecimento é retribuído por estes
em momentos de suspensão das leis naturais, os chamados milagres.
Foi a sua gratidão pela idolatria que levou a Tubarinora a,
apercebendo-se do momento de aflição dos seus adoradores, conseguir teletransportar
para Karvatun Lap os poucos sobreviventes Sarafans que restavam de todo o povo
Hylden.
A instalação dos Sarafans, mais tarde renomeados Sarfa-Lap em função
das novas gerações cada vez mais distantes dos tempos Hylden, contudo, não foi
imediatamente pacífica.
Apesar de os Sarfa-Lap serem, hoje, um povo relativamente calmo, nas
primeiras gerações, ainda enquanto Sarafans, usaram a sua capacidade de coação
militar para, em pouco menos de um século, expulsar os PN, entretanto
completamente incapazes de reagir belicamente às agressões, da metade quente e
fértil do planeta, empurrando-os para o seu hemisfério gelado, onde ainda hoje
permanecem.
A garantia da coexistência pacífica entre ambos, PN e Sarfa-Lap, foi
conseguida com um pacto de limitação geográfica e militar, que ainda perdura.
Assim tem sido desde sempre e essa paz duradoira tem amolecido os
Sarfa-Lap que, hoje, desenvolvem variadíssimas atividades. Uma delas, a que nos
interessa para aqui, tem a ver com a procura da origem da vida.
Toda a sociedade intelectual Sarfa-Lap está organizada por grupos
intergeracionais de intenção, associações de estudiosos obcecados por temas que
aprofundam até à exaustão. Os grupos podem ser constituídos por membros
simplesmente interessados no assunto, ou, o mais comum, serem todos do mesmo
ramo familiar.
Apesar de residirem noutra dimensão planetária, estes Sarfa-Lap sabem
que começaram na Terra. Julga-se, por isso, que já por cá andem há algum tempo
em estudo. Sendo A Origem o motivo do interesse, é óbvio que o ambiente
aquático tem sido o cenário privilegiado para as suas investigações.
Certos meios académicos, onde este tema já se discute (timidamente),
chamam “Salteador da Madrepérola” ao nosso investigador Sarfa-Lap, por ser à
linhagem deste composto que ele atribui o berço de toda a vida terrestre.
Em função dessa suspeita intelectual, o nosso alien com costela
terrestre veio para cá, supostamente, com o intuito de estudar as únicas ostras
que produzem pérolas.
Tudo, quanto a ele, reside nesta reação do molusco (a ostra) a corpos
estranhos. Quando areia, maioritariamente, outro tipo de substância ou mesmo
parasitas entram no interior do bivalve, este tenta isolar o invasor cobrindo-o
com uma secreção composta, justamente, por nácar ou madrepérola que, quando
cristalizada, terá a forma da pérola que a tornou famosa. Ao isolar o intruso
dentro de si, em vez de o expulsar, incorpora-o.
A esta reação instintiva de incorporação chama, o Dr Lap, Capacidade
de Adosinda. A sua teoria da origem da vida na Terra aponta o momento em que um
enorme corpo celeste, de nome Adosinda, terá caído no planeta, colocando-o na
sua rota definitiva.
Adosinda é um aglomerado biogeológico, por ter estruturas minerais e
biológicas em simbiose. O único objetivo de vida de Adosinda é crescer, por
isso, na sua viagem, sempre que embate contra qualquer realidade física, exerce
a sua única capacidade, a Capacidade de Adosinda, que é fazer o mesmo que as
ostras fazem quando se defendem, incorporar o intruso.
Adosinda define-se, quando aterra, como o resultado de todas as
inimagináveis possibilidades minerais, biológicas e outras que foi incorporando
na sua viagem cósmica.
Segundo eles, este bolo é a base da nossa existência.
São bastantes os exemplos de promiscuidade molecular entre a geologia
e a biologia, estruturas ósseas, o marfim, mas a ostra parece ter um encanto
especial para este estudioso das origens. Relegando para o plano da
insignificância o facto de a pérola ter uma origem animal, a presença de certo
tipo de cristais de bicarbonato de cálcio leva-o a concluir que a pérola, como
gema, é uma ramificação direta do nosso primeiro ser vivo.
Na gema ele encontra paralelos com Adosinda, o biomineral primordial,
como que uma rocha com vida.
O que é certo é que as pérolas vivem no mundo aquático e foi essa
aparente coincidência de interesses que aproximou o Sarfa-Lap dos estudiosos do
mar, aproveitando a boleia do fenómeno hidrossapiens para revelar “outros
dotes”.
Para além do que já referi sobre a sua história, sei pouco sobre como
os habitantes do hemisfério Lap do planeta Karvatun Lap realmente são.
As nossas fontes interdimensionais forneceram-nos dados bastante vagos
sobre a sua personalidade social. Sabemos que este Dr Corial Lap não é o único
Sarfa-Lap por cá. Pertence a uma elite denominada “Brigada Genealógica” e, pelo
que percebi, é assim como um grupo que procura, a todo o custo, sublinhe-se, a
todo o custo, cito o documento, “experimentar a origem”.
Sabemos que a única lei que define a cultura Sarfa-Lap é o testemunho
da experiência. Conclui-se facilmente que este investigador queira
experimentar, em toda a plenitude, o ambiente mais próximo da origem da vida, o
aquático.
Da sua sociedade chegaram-nos alguns episódios curiosos.
Registo aqui um até bastante interessante.
Chamam Herança de Urano à dualidade PEDRA-RIO que ensinam aos seus
infantes. Trata-se da capacidade de resistir a envolver-se, conservando-se
neutral. Falam de uma última hipótese que a razão dá antes do envolvimento
emocional, da perdição dos conceitos.
Explicam aos mais novos que cada um deles é um bom condutor emocional:
cada emoção que lhes chega pode ser, rapidamente e com extrema eficácia,
passada a outros, pelo que são RIO.
Assim, enquanto RIO, as emoções passam por eles e fluem para os
demais.
No entanto, na sua teoria emocional, para passarem por eles para os
outros precisam de motivações, querendo dizer que se passam para outrem vão
ainda mais fortes, pois cada condutor, ou RIO, acrescenta-lhe as suas próprias
motivações às que a emoção já acarretava, encorpando-a.
No entanto, a Herança de Urano permite-lhes parar para pensar e, caso
seja, ser PEDRA em vez de RIO.
Decidir não passar uma emoção e fazê-la morrer ali mesmo.
Se alguém se vê confrontado com um sentimento que condena, pode não
ser RIO, pode impedí-lo de crescer, pode sempre decidir não aderir a ele. Ser
PEDRA.
No fundo, é-se PEDRA sempre que se contribui para a atitude contrária
daquela que nos chega.
Têm até uma expressão, parecida a uma nossa, que é: No meio da
tempestade, tu podes ser a bonança.
Sei também que um dos valores do hemisfério Lap é a hipervalorização
do conhecimento a níveis absurdamente meritocráticos. Neste caso, nas palavras
deste investigador das origens, houve sempre hipervalorização da coragem
daqueles que aproximaram os seus rituais naturais do cenário inaugural e o
incentivo à afirmação da sua superioridade relativa a quaisquer outros que o
não fazem.
Lembro-me de o ver, antes de mudar para uma dessas novas
nacionalidades subaquáticas, com um emblema do grupo paramilitar NDS,
justamente de uma das primeiras comunidades que decidiu cortar ligações com o
mundo à superfície e tornar-se independente.
Esta alucinação meritocrática fê-lo, de certeza, aproximar-se dos
humanos pioneiros da vida na água, os que viriam dar (através de toda esta
parafernália de intervenções genéticas) à já, polemicamente reconhecida,
variante humana, hidrossapiens.
Apesar de muitos amigos meus terem algumas reservas quanto a esta
minha associação de evidências, ninguém me tira cá do sentido que ele é um dos
responsáveis pelos novos hidroestados (ou hidronações, ou hidrotribos, é grande
o número de designações atribuídas).
Quando aconteceram os primeiros confrontos ninguém sabia quem eram os
amotinados, antes pelo contrário, parecia que todos os países, distraidamente,
queriam era manter o seu quinhão deste verdadeiramente novo mundo e fazer-se
representar em extensões das suas próprias comunidades.
Agora, com o reconhecimento das hidronacionalidades e os seus direitos
internos, como o de cada novo hidrocidadão, vindo da superfície, poder mudar o
seu próprio nome, desapareceu muita gente de muitos países, perdeu-se o rasto a
muitos nomes e o Dr Corial Lap aproveitou essa boleia para desaparecer.
Preocupa-me não saber o que anda a congeminar.
Ainda digo mais, quando este Salteador das Madrepérolas começou a
aparecer apenas como um cientista interessado (nada haveria a estranhar, já que
quase toda a primeira geração de subaquáticos era cientista) eu suspeitei de
algo estranho. Havia um olhar diferente no homem que me deixava de pé atrás.
Depois, até desaparecer do mapa, via-o absolutamente envolvido com as
frentes mais radicais do independentismo aquático, defensor da superioridade do
Homem da Água, pelo que começo a fazer cá as minhas contas e não consigo
dissociar umas das outras: é minha convicção, repito, que foi, senão o
instigador, um dos mais influentes promotores das hidronações.
E (o que ainda pouca gente sabe) tendo ele vindo de outro mundo,
haverá algum interesse desse mundo nisto que se está a passar? Esta acaba por
ser, quanto a mim, a verdadeira interrogação. É esta questão que me deixa
apreensivo, por tudo o que implica.
Duvido que o Dr Corial Lap cá esteja por sua própria iniciativa. Já
sei que pertence às tais Brigadas e que pretende experimentar a vida, da forma
mais plena possível, nas suas origens aquáticas.
Se ele foi um dos pioneiros nas investigações iniciais da vida humana
na água, poderá ter sido seu o interesse que despoletou esta loucura? Será ele
o famoso inspirador do engenheiro do Calypso?
Independentemente da prioridade dos temas em cima da mesa, na
discussão desta questão, inédita na História da Humanidade, não podemos
subestimar um fator: atingimos um ponto sem retorno. Dois acontecimentos o
determinam: o primeiro guelriano (agora já com 10 anos) e os 5 Independentes
(acho que a terceira comunidade subaquática a ser construída foi das primeiras
a transformar-se num dos autodeterminados e, agora, reconhecidos hidroestados).
O nascimento oficial (não se sabe se há mais, suspeitas apenas) de um
guelriano (como parece que os próprios preferem ser designados) dentro de uma
comunidade nipobrasileira, não independentista, é um marco na evolução do
Homem.
Já outras crianças tinham sido geradas desde que começaram as
manipulações de ADN. No entanto, nenhuma conseguira atingir a completa
autonomia respiratória na água, para todas fora sempre necessário introduzir
próteses. Ainda que de cada gestação tivessem saído sempre crianças com uma
maior autonomia, nenhuma tinha atingido a autossuficiência; em nenhuma a
intervenção genética nos progenitores se transformara no verdadeiro e completo
código hereditário pretendido. Agora, sim. Nasceu o primeiro guelriano, ou
hidrossapiens, como lhe chamam os eruditos.
Oficialmente (digo oficialmente porque acho que já se perdeu um bocado
o controle da coisa), há 32 comunidades subaquáticas: cinco independentes
(inicial autodeterminação, mas com atual reconhecimento terrestre), mais umas
dez com tendências independentistas, as restantes são comunidades de
estudiosos, de lazer, ou de residências temporárias. Diz-se que em todas as
cinco independentes há vários elementos já hidrossapiens. O único oficial,
no entanto, é apenas o que já referi. O que, ao mesmo tempo, quer dizer que há
um reconhecido; é, portanto, um facto.
A internacionalmente famosa EME, cá de Santo André e dinamizadora do
evento a que hoje me dirigi, entra na História Universal pela invenção de uma
das maiores revoluções materiais de sempre: o evolucionário fato epidérmico.
Esta estrondosa vitória da equipa científica da EME permite que o fato
vá, gradualmente, substituindo a própria pele, transformando-se nela.
Como se não bastasse o conseguido, avanços tecnológicos têm permitido
renovar constantemente o fato epidérmico. Um grande marco foi conseguir que o
fato fosse, simultaneamente, inteligente, conseguindo gerir elementos
diretamente do meio aquático.
Uma das mais recentes conquistas da equipa, que veio facilitar a
hidrovida no fundo abissal foi a redução do efeito direto da pressão da água
aplicado à roupa (e, posteriormente, à própria pele daquele que a vestir). A
composição dos fatos faz com que a força exercida pela água em profundidade
seja transformada em energia que, por sua vez, pode ser canalizada para uma
gama cada vez maior de possibilidades como propulsão, luz, regulação de
temperatura, enfim, de cada vez que sai um modelo novo, há sempre novas
adendas.
Agora já é possível vestir um fato, deixá-lo passar todo para a pele e
voltar a usar um outro por cima, um modelo novo, com novas possibilidades, mas
sem eliminar as anteriores. Os compostos dos novos fatos reforçam-se perante
iguais e acumulam-se perante diferentes, permitindo manter funções e introduzir
sempre novas. São ilimitadas as possibilidades evolutivas, até mesmo porque
tratando-se de processos eletrónicos, o que não falta é criativos a apresentar
ideias.
As construções das primeiras comunidades (e que fizeram escola,
tornando-se na imagem de marca da arquitetura subaquática, UWA,
UnderWaterArchitecture) são variações do conceito espelho, refletindo o mar em
si próprias.
Vi uma imagem de uma comunidade independente subaquática, os AIF
(Abyss Independent Family), e pareceu-me que, ainda que muitas superfícies
continuassem espelhadas, havia algumas dissonâncias com as construções clássicas
do bastante interessante movimento arquitetónico do fundo do mar. Um
dos exemplos é o caso de um aldeamento AIF com as superfícies completamente
cobertas com vegetação, quase camuflado no solo.
Na União Concha, outro hidroestado, há um bairro tecnológico onde as
casas nunca estão no mesmo local. Ao moverem-se geram energia das correntes.
Conseguem autonomia energética pelo facto de as habitações, integradas num
sistema de rede siléptica, se deixarem levar, até certos limites, pelo
movimento do próprio mar.
Voltando ao fato epidérmico, é óbvio que a invenção de tal importante
ferramenta implicou à EME a partilha mundial de produção. Quando passou a
Património Mundial, todos passaram a saber como fazê-lo.
Escusado será dizer que, de cada vez que um fato é produzido, a EME
recebe uma pequena taxa, que podemos traduzir já numa incomensurável fortuna.
Ora, a produção que já acontece no mundo subaquático do fato
epidérmico levou a que novas descobertas tecnológicas, mas com repercussões
sociais, tenham vindo a emergir.
Recentemente, e para mim o mais bombástico, uma outra comunidade (já
vão 3) aderiu ao movimento pelo nãoabrigo, no que parece ser uma tendência,
dado o interesse com que tem sido debatido pelas restantes comunidades
subaquáticas, mas também pela angariação de simpatias provocada até pela forma
como esses casos vão despontando nas notícias.
Falam, os comentadores mais líricos, num hidronomadismo, o nomadismo
adaptado ao mar, já que estes hidros tendem cada vez mais a movimentar-se em
mar aberto, ilegalizando fronteiras e a abrigar-se num sítio qualquer ou a
ocupar temporariamente comunidades desativadas.
Com os fatos que produzem, que vestiram e que a sua pele assimilou,
conseguem transformar a pressão da água em quase tudo o que necessitam, mas é
um quase que pode ter os dias contados.
Referiu um representante da EME, hoje na exposição, que se prevê a
evolução para fatos, entretanto pele, cito, “que permitam a qualquer guelriano,
implantado ou hidrossapiens, recolher nutrientes suficientes da própria água,
de modo a satisfazer qualquer necessidade alimentar”. Autossuficiência.
Radical…
Até mais,
Pacífico Maria Figoldes
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