Este ano de 2011 tem um primeiro de maio triplamente festejado: é o
dia do Trabalhador, é o dia da Mãe e é o primeiro dia das comemorações do 70º
aniversário do Z3, que se prolongarão até ao dia 21, dia em que foi apresentado
ao público.
Pouca notoriedade mundial teve este acontecimento de extrema
importância para a forma como vemos o mundo nos dias de hoje. Talvez por ter
sido poucos dias após o ataque a Pearl Harbour (e ter ficado remetido a um
segundo plano de reconhecimento), talvez por ter sido criado por um alemão num
contexto de segunda guerra mundial (em que tudo o que era alemão era rejeitado,
por razões emocionais óbvias).
Porque temos a noção de ser um facto pouco conhecido do grande
público, apesar das implicações dessa conquista no nosso quotidiano, iniciamos
hoje uma série de 10 cadernos, simbolicamente intitulados “Z3 & o
Infinito”. Pedimos aos mais conceituados techno-historiadores e críticos
cybernéticos para selecionarem 10 pontos que considerassem essenciais na sequência
evolutiva da tecnologia, mas que dificilmente ocorreriam, não fora o Z3 e o seu
pioneirismo.
Este primeiro número, a que chamámos “Origens Epistolares”, serve os
objetivos de introduzir o assunto que nos move e, simultaneamente, apresentar
uma carta assinada por Zuse, dando conta do contexto algo surreal da sua
decisão em criar o Z3.
E quem é este homem? Incisivamente falando, Konrad Zuse, um estudante
de engenharia mecânica nascido em Berlim em 1910, por estar farto dos monótonos
cálculos matemáticos que tinha de fazer, começou a idealizar uma calculadora
que fizesse esse trabalho.
Durante os seus estudos de engenharia teve Andreas S. Brat (filho de
um embaixador) como colega e amigo. No verão de 1939 Andreas teve de acompanhar
o seu irmão mais novo numa visita a um familiar doente, radicado no então
arquipélago português, S. Tomé e Príncipe, e convidou-o.
Zuse já ouvira falar de uma tribo a que os são tomenses chamavam Samer
e cujas caraterísticas se envolviam num mistério demasiado intrigante para um
jovem curioso como ele. A possibilidade de acompanhar o amigo em tal viagem fez
vibrar a sua mente exploradora, mesmo sabendo que Andreas não o poderia
acompanhar à ilha onde vivia a tal tribo, pois não poderia deixar sozinho o
irmão mais novo.
Após Andreas o ter encaminhado, chegou à ilha dos Samer. Ali, o guia
que Andreas providenciara disse-lhe que já não ia mais adiante, mas que
encontraria a tribo a uns 10 km dali se seguisse sempre a acompanhar o rio.
Informou-o ainda de que um dos Samers sabia falar português e que já tinha sido
informado da sua visita. Disse que voltaria em cinco dias para o vir buscar e
que tivesse cautela, pois poucos se tinham aventurado em tal território.
No quinto dia, como combinado, lá reencontrou o guia no mesmo local.
Como a estadia em São Tomé e Príncipe se prolongaria por mais uma semana,
enviou uma extensa e detalhada carta à filha de Lord Byron, sua namorada, de
nome Ada Lovelace (ela própria colaboradora próxima de Babbage e considerada
uma das primeiras programadoras de computadores do mundo). Esta carta não se
perdeu e foi-nos gentilmente cedida por um dos filhos de ambos, a quem muito
agradecemos.
Antes de passarmos à carta propriamente dita, é importante frisar que
Zuse já tinha construído o seu primeiro computador em 1937, o Z1. Apesar de já
usar conceitos vanguardistas, como o uso integral do sistema binário, o Z1
tinha muitas imprecisões e necessitava de um novo ímpeto. Sabemos que andava
indeciso quanto ao sistema binário, já que a representação de cada número
envolvia muitos dígitos. Se a máquina não fosse bastante veloz, tornava-se
impraticável.
Nesta indecisão andava Konrad Zuse quando empreendeu esta viagem.
Podemos ler na carta (que a seguir publicaremos na íntegra) a inspiração para
insistir no seu projeto e, em 21 de Maio de 1941, nasceu o Z3, a versão
corrigida das suas duas primeiras tentativas.
Para quem pensa que a vida de um homem das eletrónicas é passada em
locais feios, monótonos, sem apelos românticos de aventuras inéditas, aqui fica
a carta de Konrad Zuse, nunca antes publicada.
-
São Tomé, 23 de Agosto de 1939
Minha querida Ady, minha flor, meu bit de ternura
Começo esta carta por te manifestar a minha carência de ti. Faço
diariamente um esforço de precisão emocional em que revivo os momentos doces
desse nós que estamos construindo. É tão fácil amar-te que mesmo à distância o
teu olhar não sai de mim quando os olhos fecho.
Acabo de chegar de uma aventura inesquecível de cinco dias. Tirei doze
cadernos de apontamentos sobre a totalidade da realidade que presenciei e que,
provavelmente, não voltarei a visitar. Tenho algum receio de os perder ou de me
serem confiscados (dada a paranóia histérica que se vive atualmente nas
fronteiras), por isso, aqui refiro, desordenadamente, do que por lá anotei.
Depois de uma viagem bastante cansativa, mas nada monótona, lá
chegámos à ilha de São Tomé. Esta faz parte de um arquipélago-colónia
portuguesa chamado São Tomé e Príncipe, formado por inúmeras ilhas e ilhotas,
tendo como principais as que lhe dão o nome: a ilha de São Tomé e a Ilha do
Príncipe. Não fica longe de países como Nigéria, Camarões, etc, recebendo
destes influências, numa simbiose luso-africana, apesar da dominância
administrativa portuguesa. Fala-se um português acrioulado.
(Agradeço ao destino aquele campo de férias onde te conheci e onde
fizemos aquele curso de italiano – que, apesar de não ser igual ao português,
permite-me ir percebendo bastantes coisas – o Andreas ajudou-me bastante nisto
da tradução.)
A ilha dos Samer, por ser tão isolada de todo o arquipélago, nem foi
assinalada nos mapas, nem integrada no arquipélago de S. Tomé e Príncipe. Sei
que chegou a ser visitada pelos portugueses, (mais tarde te darei conta que
sim), mas que, por já estar tão afastada e por ter um ar aparentemente tão árido
e tão pouco convidativo, não foi explorada o suficiente, tendo sido votada ao
ostracismo.
De referir que a ilha dos Samer parece um deserto com uma enorme duna
ao longe. A duna fica a uns bons quilómetros da praia e é entrecortada por
pequenos riachos que vão desaguar no mar. Por detrás da duna, há ainda outros
quilómetros de deserto e uma nova duna, só atrás desta se encontra o oásis onde
os Samer habitam. O cenário desolador de deserto é comum em todas as frentes,
pelo que, do mar, nunca se avistam os Samer.
Confesso que quando o guia me deixou sozinho na ilha fiquei um pouco
apreensivo, principalmente, por não saber o que encontrar, tantos que são os
mitos sobre eles. Contudo, a ideia de haver lá alguém que já estaria à minha
espera e que me ajudaria na compreensão da comunidade, aliviou-me o pensamento.
Quando passei as duas enormes dunas que nos separam dos Samer, fiquei
espantado com a diversidade cromática que experienciei – principalmente pelo
contraste com a monotonia amarelada dos kms de deserto que tive de atravessar
até lá chegar.
Minha querida Ady, sei que só gostas de ler textos organizados (com
índice, de preferência), por isso peço-te desde já as minhas desculpas. Na
ânsia de partilhar contigo o que registei, vou-me limitar a copiar para aqui
algumas das minhas desorganizadas notas. Depois, pessoalmente, te explicarei os
detalhes.
Tenho de começar, obviamente, por te referir que se trata de uma
comunidade arborícola o que, logo à partida, é sinal de toda uma lógica de
existência quotidiana completamente diferente da nossa.
Tenho a certeza que os arquitetos Emilio Ambasz e Ken Yeang, que nós
conhecemos no último reveillon, teriam muito onde se inspirar se aqui
estivessem, pois aquela sua obstinação em relacionar as habitações com a
natureza encontra aqui um expoente elevadíssimo. Os sistemas usados pelos Samer
para gerir água, energia, iluminação, refrigeração e aquecimento revelam que o
verde é, de facto, importante, se não essencial, para sistemas mais económicos
e fáceis de manter.
Aqui eles são capazes de reduzir a temperatura do ar em redor,
melhorando a sua qualidade. Aplicando isto nas nossas cidades, não seria
preciso produzir tanta energia, pois, não só a climatização seria mais fácil,
como também afetaria o bem-estar psicológico das populações, pois isso,
acredito, advém do contacto regular com o verde natural.
A comunidade subdivide-se em pequenos grupos semelhantes à ideia de
família e estas habitam essencialmente um grupo de árvores cada.
Cada grupo tem um nome relacionado com a sua árvore privada: pode ser
o nome de uma ave que habite nessa árvore, ou outro animal, mas também
relacionado com a própria árvore, havendo os que têm o mesmo nome da árvore,
das suas folhas, frutos, etc.
Há uma árvore central usada para reunir toda a tribo, onde estava
preparada uma receção à minha chegada e onde se reuniu toda a gente, novamente,
para se despedir de mim. Apesar de todas as barreiras comunicativas, não houve
falta de emoção nestes momentos.
Em cima das árvores os Samer constroem as suas habitações e, logo à
entrada da comunidade há duas delas, suspensas, que lembram aquelas plantas carnívoras
que têm um saco pendurado, as Nepenthes chelsonii.
As formas de habitação variam consoante o grupo e, em muitos casos
até, o próprio morador. Há “casas” para um só, mas também as há para doze
indivíduos. Cada árvore é decorada com efeitos criados pelo grupo que a
dinamiza e habita, sempre muito coloridos. Ias adorar uma delas, em forma de
esfera, suspensa por cabos no topo e na base.
Na sua maioria, quase todas elas se entrelaçavam com as folhagens e os
ramos da árvore onde foram edificadas. A casa do chefe era um misto de
paralelepípedo e navio, com a frente a sair, imponente, por cima da copa da
árvore, o que é uma exceção, pois a maioria delas só se vê com um olhar mais
atento – é que numa situação de desespero esta tribo tende a esconder-se, camuflar-se,
nunca a fugir.
A tribo usa sistemas de recolha da água das chuvas não precisando
nunca de descer ao chão para esse fim. Para além disso têm preferência por
frutos e alimentos em geral bastante hidratados.
Como tribo, sabem que os animais que frequentam as árvores lhes são
aliados, pois dispersam as suas sementes e trazem outras que acabam por
fertilizar os topos das árvores, biodiversificando as copas. Por isso
partilham-nas com eles.
Há zonas no chão por baixo das árvores onde pouca luz passa, onde a
tribo lança um certo tipo de sementes que necessita de bastante humidade para
crescer. Depois recolhem os alimentos com um instrumento parecido com uma cana
de pesca. Por se acumularem folhas, frutas, galhos, sementes, entre outros,
essas zonas escuras são o local ideal para a proliferação de insetos, minhocas
e roedores, bem como de toda uma série de aves e pequenos predadores que os
caçam. Os dejetos e restos mortais de toda esta parafernália animal são
recolhidos com umas colheres gigantes e usados para fertilizar os jardins e
hortas suspensos.
Quando vi as árvores, tão coloridas, pensei que, dada a quantidade de
canteiros suspensos floridos, usariam algum sistema de irrigação como a do rio
Eufrates, nos famosos jardins suspensos da Babilónia. Tal eram que fiquei
maravilhado a reparar na diversidade de cores e aromas que cada árvore exibia,
como se os seus moradores disso fizessem honra. Constatei que é um sistema
misto de flores, que naturalmente vingam naquele habitat, com um sistema de
canas e folhas da própria árvore que formam vias de escoamento da água das
chuvas e orvalhos diretamente aos canteiros suspensos. Assim se mantém viçosas
e espampanantes.
As árvores acabam por satisfazer as necessidades de proteção dos
predadores e das cheias diluviais que, pelo menos uma vez em cada cinco anos,
segundo me disseram, marcam presença na zona. Servem, igualmente, para
conseguir alimento para o grupo e, nas partes ocas dos troncos, para os
armazenar e conservar. Como agricultores exímios, usando os insetos que a
povoam, fazem hortas em todos os bocadinhos possíveis de troncos, caules,
interiores ocos, até mesmo entre folhagens.
Com o tempo esta tribo foi-se especializando na procura vital da
árvore que crescesse e se restaurasse mais rapidamente e que fornecesse bases
de apoio para a criação de hortas, jardins e até outras árvores. Compreendi que
fazem enxertos de certas árvores noutras na busca da árvore ideal. Perto de
cada árvore habitada há sempre variadíssimas outras árvores de fruto, mais
pequenas.
Acho que o amigo do teu pai, (aproveito para mandar lembranças a Lord
Byron, que muito estimo) o sr. Douglas, o dendrocronologista, adoraria estar
por aqui e estudar a árvore central. Há uma falha no tronco, que me permitiu
olhar para o seu interior e contar os anéis. Apesar de esta falha mostrar
apenas um bocado do tronco, o seu recorte na árvore permitiu-me contar 1300
anéis, o que a fará, se não igualar, superar a idade daquela sequóia gigante da
Califórnia com 3200 anos, que ele considerou o ser vivo mais antigo na Terra.
Os Samer andam sempre com um macaquinho agarrado ou por perto, iguais
a uns que nós observámos no zoo de Düsseldorf, os bugios. Os bugios
domesticados são usados também para comunicar à distância e creio que tenham
sido trazidos há muito tempo por viajantes da América do Sul, mas não consegui
ter a certeza.
O facto de nunca descerem das árvores, nem para beber água, faz deles
o pet ideal.
Lembro-me de termos tomado conhecimento em Düsseldorf de que não há
animal capaz de produzir um som tão forte em todo o planeta, havendo registos
de ter sido ouvido a mais de 15km de distância.
De tal forma os bugios acabam por fazer parte da vida de cada pessoa
que, quando morrem, são comidos pelos seus donos (é a única exceção à dieta
vegetariana da tribo) e o seu pêlo ruivo é incorporado em peças de vestuário
que o dono usa com orgulho.
Falo-te agora dos próprios Samer. Importa sublinhar que sofreram um isolamento
genético e social de milénios, o que justifica características físicas e
culturais peculiares.
Têm pés zigodátilos (ou seja, têm dois dedos para a frente e dois para
trás – tal como os tucanos e os pica-paus) e braços e pernas muito longos e possantes
com músculos muito desenvolvidos. Isto permite-lhes equilibrar-se, pendurar-se
e trepar com facilidade.
No dia a seguir à lua cheia festejam o facto de terem sobrevivido a
mais uma noite de maldição (à frente explico). Por isso, decoram-se com a natureza
disponível, como as tribos do leste africano, que conseguem a partir de pedras,
barro, frutos e plantas, mas fazem-no com uma criatividade singular: nunca
repetem os mesmos padrões e os mais originais são admirados pelos restantes.
Não posso deixar de referir nos meus apontamentos o meu guia tribal e
grande companheiro nestes cinco imensos dias que lá passei.
De nome impronunciável (eu chamava-lhe Ingo, por ser parecido) viveu
no mundo exterior durante muitos anos, vítima de um sequestro por parte de piratas.
Quando conseguiu fugir, acabou por construir uma pequena embarcação e regressou
à ilha. Durante a sua estadia no exterior aprendeu português e uma série de
vocábulos soltos de variadas línguas. Foi ele que me recebeu na ilha, que me
contou muitas coisas sobre a tribo e que serviu de intérprete em muitos dos
contactos que tive com os seus.
Dedico agora algum espaço nesta já longa carta a um assunto que merece
alguma atenção. Refiro-me ao facto de os Samer serem arborícolas. Apesar de nem
o Ingo me saber dizer ao certo a origem desta característica tão importante
(porque afeta diretamente todos os aspetos da vida quotidiana), apresento-te
aqui, em primeiríssima mão, os meus apontamentos sobre o assunto. Para tal
falei com quase todos os elementos da tribo (sempre na presença insubstituível
do Ingo). Por sorte, a penúltima noite que cá passei coincidiu com a lua cheia.
Já perceberás o porquê da importância desse facto e de, como te referi, eles
celebrarem o fim da lua cheia.
O seu lado arborícola prende-se com uma ideia que os acompanha desde
tempos ancestrais e que se traduz num certo receio em se aproximar da zona onde
as coisas más acontecem, o submundo, o mundo dos malditos, debaixo da terra.
Desta forma, quanto mais afastados estiverem da terra mais protegidos se
sentem.
Se inicialmente possa ter havido momentos em que teriam querido ficar
longe do solo (por motivos meramente supersticiosos), a partir de uma certa
altura o chão tornou-se absolutamente interdito pela existência de um certo
tipo de vampiros de chão que o habita. Só assim compreendi o porquê do
constante cheiro a alho – é que estes só não trepam às árvores pois os seus
troncos são protegidos, na base, com alhos, quilos de alhos.
Pela descrição dos anciãos da tribo, trata-se de um vampiro medieval
português, portanto muito antigo (logo dotado de grande conhecimento da psique
e alma humanas).
Pensa o Ingo que, enquanto vivia em Portugal, tenha andado misturado
com a população sem se fazer notar, até ocupado cargos de poder. Durante a
Inquisição ter-se-á remetido a um papel mais discreto, talvez até adotado uma
lei de silêncio absoluto, também chamada de Masquerade. Aquando das descobertas
marítimas e processo de colonização do arquipélago de São Tomé e Príncipe, pode
ter engendrado uma forma de ser transportado para lá e enterrado noutro cenário
para se poder reerguer longe dos tentáculos inquisitoriais.
No entanto, conhecedores do terror que transportavam, os tripulantes
decidiram levá-lo, não para uma ilha habitável, mas para uma das ilhas mais
longínquas, com o objetivo de não provocar mais sofrimento humano. Não
imaginavam os navegadores que houvesse vida nessa mesma ilha, dadas as
características já arborícolas e camuflantes da tribo local.
Pensa-se que esse vampiro tenha sido acordado do seu sono diurno e
duradoiro pelos próprios Samer, numa fase em que ainda desciam ao chão, durante
um momento de atividade agrícola em que plantavam o solo e cavavam fundo na
procura de poços de água doce. Numa dessas escavações terão, inadvertidamente,
encontrado o caixão. Não sabendo de que se tratava, abriram-no despertando o
vampiro que iniciou todo este processo tenebroso.
Os “mordidos” (elementos da tribo que, por alguma razão foram
apanhados desprevenidos – ou caíram da árvore, ou foram influenciados a descer)
acabam por definhar e morrer em pouco tempo, reaparecendo em noites de lua
cheia, já com algumas diferenças físicas, nomeadamente a cor empalidecida do
rosto e a dentição, destacando-se o aumento dos incisivos.
Há um tónica de sofrimento nos gritos que se ouvem nessas noites.
Gemem então atormentando os membros da tribo, pois estes conseguem identificar
os entes queridos nos gemidos dos vampiros que, apesar de imortais e poderosos,
parece quererem ainda manter o que lhes resta de humanos, num artifício
psicadélico destinado a emocionar os ouvintes.
Apesar de as suas aparições só se verificarem em momentos pontuais, o
terror associado à sua presença definiu definitivamente a interdição dos Samer
ao solo.
A tribo chama aos vampiros um nome difícil de reproduzir, mas que, de
alguma forma, se assemelha a Biningo Querubim. Podem ter herdado este
conhecimento dos contactos que foram, esporadicamente, tendo com os europeus.
Poderá estar relacionado com a ideia do anjo caído, o querubim Lúcifer, que
pertenceu à primeira hierarquia angelical, juntamente com os Serafins e os
Tronos e que, no seu conjunto e de acordo com esta mitologia bíblica, são os
que mantém íntimo contacto com o Criador.
Minha querida Ady, pouco mais te poderei contar nesta epístola que não
sei se vais ter paciência para ler, no entanto, há algo que não posso deixar
ainda de partilhar contigo.
Há uma noção dualista nos Samer que, de algum forma, está a
influenciar os pressupostos que devo adotar na construção do meu Z3. Como
sabes, a frustração dos dois modelos iniciais (Z1 e Z2) levou-me a pôr em causa
tudo o que teoricamente assumi como uma bandeira de projeto. Pensei, inclusive,
em voltar a inspirar-me no teu colega Charles Babbage, trocando o sistema
binário pelo sistema decimal. Mas acho que o não vou fazer.
Para os Samer há dois mundos nítidos, o de cima das árvores e o do
chão, o mundo em duas possibilidades, uma leitura binária. Tudo se compõe
destes dois elementos: ou se sobe ou se desce, quanto mais para cima, mais puro
e alegre, quanto mais para baixo, mais medonho e periclitante. Esta dualidade
omnipresente na vida da tribo parece que me obriga a repensar o sistema binário
ou base 2 como viável. Para quê mais opções, se duas apenas se complementam tão
bem.
Quando aí chegar vou insistir nesta hipótese de construção do meu
projeto. Qualquer coisa que consolide um sistema binário, sim ou não,
verdadeiro ou falso, tudo ou nada, 1 ou 0, ligado ou desligado, aberto ou
fechado, contacto ou interrupção, passagem ou vedação, enfim… será que é
possível concretizar esta ideia por circuitos eletrónicos digitais?
No fundo, é como se déssemos instruções em língua de serpente – já que
elas funcionam com os sensores que têm na ponta da sua língua bifurcada, e vão
reorganizando o seu percurso em função da confirmação ou não de informações que
reúnem.
É como se o sistema binário, já comentado na China antiga e
reformulado cientificamente por Leibniz, encontrasse na ilha dos Samer uma
metáfora quotidiana, pois com eles tudo sobe ou desce.
Assim te deixo por ora.
O teu megabyte, de roupa suja
Konrad Zuse
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