Indagações de Biningo
Jéssica Chen de Tondela
Estou destroçada.
Desapareceu o meu amigo Valter Zuse. Literalmente desapareceu.
A dor de uma perda é irrecuperável. Maior é quando fica indefinida.
Neste caso, a perplexidade rivaliza com a dor. A angústia de não conseguir
compreender como tudo aconteceu gera um sentimento ainda mais penoso. Para além
da estima que sempre senti pelo Valter, sou amiga íntima da Eva, sua irmã, e
sinto por ela e com ela um sentimento de completo desnorteamento.
Não tenho conseguido concentrar-me em nada, pois estes acontecimentos
têm-me deixado pasmada com a vida (ou com a morte, enfim, já nem sei). Sinto,
portanto, uma grande necessidade de registar alguma documentação que me foi
facultada pela Eva, para que eu própria, mais tarde, na bonança, a tente
digerir.
Tenho dois interrogatórios.
Deixam algumas coisas no ar, interrogações, principalmente.
- - -
Processo 34920/11T
Primeira fase: Averiguações
Recolha de Testemunhos pela inspetora: Carla Mirtiliosa e equipa
Interrogado: Andreas Milstein
Assume-se como a pessoa que detém este cartão identificativo?
“Sim.”
Sr. Andreas, antes de mais, explique-me lá como é que é isto de haver
uma Embaixada Alemã em Vila Nova de Santo André.
“A dada altura o governo alemão apercebeu-se que a esmagadora maioria,
se não a quase totalidade de cidadãos seus a residir no país morava na costa
alentejana. Os próprios alemães residentes acabaram por protestar porque
fartavam-se de fazer deslocações a Lisboa. Na impossibilidade de deslocar a
embaixada para a província, por questões estratégicas, lá decidiram criar uma
delegação em Vila Nova de Santo André. A escolha prendeu-se com o facto de ser
a cidade com a maior intervenção de alemães.”
O que quer dizer com “intervenção de alemães”?
“Como sabe, o Algarve está cheio de turistas e está de tal forma
descaraterizado que são eles próprios que passam a palavra para que se concentrem
por aqui. Temos, assim, um número avultado de alemães a morar mesmo em Sto.
André (através dos documentos caraterizadores da zona, ficamos a saber que 42%
dos residentes na cidade são estrangeiros, destes, 85% são alemães, sendo que
60% dos quais já cá mora efetivamente há mais de 10 anos).”
“Sendo pessoas bastantes ativas, acaba por se fazer sentir a sua
presença, não só porque se interessam em resolver questões locais (já há
projetos de colaboração institucional, por exemplo, com a junta de freguesia),
mas porque a UNP desenvolve programas internacionais como os Cursos de
Nacionalidade, a que estes aderem em massa quando chegam.
Temos dados em como, curiosamente, numa fase posterior da sua
permanência acabam por continuar a relacionar-se com esta instituição, a
Universidade Novos Paradigmas. Temos alemães (e outros estrangeiros em geral) a
fazer estudos superiores na UNP nas mais diversas áreas (com destaque para os
Doutoramentos em Áreas Combinadas, há bastantes a fazer este tipo de
investigação), bem como já há mesmo alguns a lecionar cadeiras e a orientar
mestrados e doutoramentos.”
Já percebi que foi na sequência dessa constatação que foi aberta a
delegação local. E o senhor entra neste processo como?
“Naturalmente. Nos últimos cinco anos trabalhei (ainda que de forma
intermitente) como secretário de um arquiteto alemão cá em Sto. André. Foi essa
experiência que me deu currículo para preencher uma das vagas da embaixada. No
concurso davam preferência a portugueses que tivessem trabalhado com alemães e
vice-versa.”
O senhor não tem um nome português...
“Os meus pais são Austríacos e moram cá já há uns 50 anos. Trabalharam
sempre na indústria farmacêutica e agora estão reformados.
Como pode ver no documento de identificação, eu sou um cidadão
português, mas apesar de ter nascido em Portugal e de sempre cá ter vivido,
comecei por ter apenas a cidadania austríaca. Só aos 25 é que adquiri a
nacionalidade portuguesa.”
O senhor viveu sempre cá? Explique lá esse sotaque tão germânico.
“Pois, a minha vida começou cá em Portugal, sim, mas podia ter sido
noutro local qualquer do mundo, que seria da mesma forma. Ou seja, até quase
aos 20 anos, nunca falei português com ninguém (só alemão, inglês e, de vez em
quando, francês).”
“Vivíamos numa comunidade no centro do país, no distrito de Coimbra e,
apesar de fazermos regularmente viagens turísticas pelo país, nunca tive
suficientes contactos linguísticos que me permitissem praticar.
Fui sempre fazendo os estudos à distância com escolas alemãs, que iam
oficializando as minhas transições de ano letivo até entrar para a
universidade.
Foi então que decidi sair da comunidade e fazer estudos superiores no
Portugal real. Entretanto conheci uma alemã, que também frequentava a mesma
universidade que eu, com quem casei e com quem falo sempre em alemão.
Talvez explique…”
Certo. Voltemos ao lugar de funcionário. Porque preferiu mudar do tal
escritório para a embaixada?
“Razões práticas: a embaixada localiza-se na rua onde moro, o ordenado
é maior e entrei diretamente para o quadro de efetivos da casa, coisa que o
arquiteto com quem trabalhei tinha algum receio em concretizar (eu
compreendo-o, o trabalho que ele desenvolve é incerto, irregular, tanto pode precisar
de dois ou três funcionários – que contrata por períodos trimestrais ou
semestrais – como de nenhum, por ausência de encomendas).”
Ok. Diga-me então quais são exatamente as suas funções na embaixada?
“Faço um pouco de tudo o que signifique “apoiar a embaixada”, assim
mesmo me foi apresentado o leque de funções que teria de desenvolver. É claro
que a tónica acaba por cair em atividades de secretário, como atendimento ao
público (ao vivo, por telefone, e-mail, etc.), mas também tudo o que signifique
dar apoio na generalidade (marcar encontros, organizar receções, distribuir
materiais, tirar cafés, enfim, tudo o que me ocupe o tempo ao serviço e que
seja necessário – já limpei o chão, numa vez em que a empregada da limpeza
faltou inesperadamente).”
Integra então a equipa dos funcionários da embaixada. Estamos a falar
de quantas pessoas?
“Aqui em Sto. André somos 6 funcionários e o diretor.”
Vamos então aos acontecimentos em causa: conte-nos como tudo isto
começou.
“Estive a ver os registos telefónicos (para me certificar) e foi no
dia 2 de novembro, uma quarta-feira, pelas 17:30, que recebemos o telefonema –
atendido por mim, já que no momento estava na secção de atendimento – de um
senhor que se identificou como Crinto Delnhuc Biningo, cidadão de São Tomé e
Príncipe. Falou em inglês, com um sotaque indefinido.”
O que conversaram?
“Foi uma conversa breve e bastante funcional. Ele apresentou-se,
normalmente, e disse que precisava de contactar um morador de Vila Nova de
Santo André, que tinha ascendência germânica. Sabia que tinha apelido Zuse, que
tinha duas irmãs, mas que não conseguia saber mais nada dele.”
E qual foi o objetivo manifesto do telefonema?
“Duas coisas, saber se na embaixada lhe podíamos confirmar a
existência do tal Zuse e se, em caso afirmativo, seria possível marcar um
encontro. Acrescentou ainda que sofria de fotofobia e que, portanto, preferia
marcar um encontro noturno. Disse-lhe que, mesmo sendo de dia, podíamos marcar
o encontro para uma das nossas salas (nomeadamente a sala de cinema) isoladas,
mas ele salientou que, mesmo que a sala fosse escura, teria de se descolar à
luz do dia, o que só lhe trataria sofrimento.”
Como lhe pareceu o tom de voz?
“Como assim?”
Se lhe pareceu nervoso, calmo, enfim…
“Ah!, ok, pois, não pensei muito no assunto, pelo que deve ter sido
discreto, quero dizer, nem muito nervoso, nem exageradamente calmo, digamos…
normal.”
Como deu provimento ao telefonema?
“Relatei o telefonema, como faço sempre, ao diretor. Assim que referi
o apelido Zuse, o senhor diretor identificou imediatamente a quem se referia,
pois conhecia pessoalmente o senhor, de nome Valter Zuse, e que, sim, tinha
duas irmãs.”
Confirma, então, que o seu diretor admitiu conhecer pessoalmente o sr.
Valter Zuse?
“Sim, logo que mencionei o seu nome, ele referiu que já tinha estado
várias vezes com ele, ainda que não o visse há uns anos já. Pelo que percebi, o
sr. Zuse tem várias casas e nem sempre está por cá.”
Foi essa a justificação que o seu diretor deu para não o ver já há
algum tempo?
“Não só e até talvez nem seja a razão principal. Recordo-me também de
ele ter dito que se conheceram através de uma das suas irmãs que agora trabalha
em Espanha para uma revista de arte, ou algo assim, mas que antes vivia por aqui.
Como ela era o elemento que os mantinha em contacto, a sua ida para o
estrangeiro fez com que deixassem de se ver.”
E depois, depois de ter identificado, através do seu diretor, a
existência do senhor com o apelido Zuse, o que fez?
“Logo que o meu diretor identificou a pessoa em causa, tentei ligar de
volta para o número do qual o sr. Biningo me ligara, mas nunca consegui que me
atendessem (disse-me ele mais tarde tratarem-se sempre de telefones públicos).
No dia seguinte, exatamente à mesma hora, recebi nova chamada sua a
perguntar se já tínhamos conseguido localizar o sr. Zuse. Disse-lhe que ainda
não o tínhamos contactado, mas que sim, que já o tínhamos identificado.
Adiantei-lhe que da nossa parte (assim o consentiu o diretor) não haveria qualquer
problema em proporcionar o encontro desejado.”
Qual a foi a sua reação ao saber que iria ter o encontro?
“Contida, apenas perguntou se poderia ser no dia 9. Pediu-me, então,
para informar o sr. Zuse que era descendente de um conhecido do seu pai e que tinha
algumas coisas para lhe entregar: como que recordações desse tempo.
Eu disse-lhe para esperar enquanto perguntava ao meu diretor se
podíamos fazer o encontro no dia 9. Após a confirmação do diretor, ele
agradeceu e despediu-se.
Ainda lhe perguntei se estava interessado em que lhe facultássemos o
contacto, a morada – caso o sr. Zuse o permitisse, obviamente.”
“Disse que não, que preferia assim.”
E depois?
“No dia 3 não foi possível avançar nesta iniciativa pois tivemos um
dia cheio de trabalho prioritário. No dia 4, durante a manhã, fui à casa do sr.
Zuse, na morada apontada pelo meu diretor (que eu confirmei na internet).
Estava em casa. Identifiquei-me, contei-lhe o que se passava e vim-me
embora. Trouxe a confirmação da sua vinda.”
Como reagiu o sr. Valter Zuse quando soube do encontro?
“Não reagiu, aliás, fiquei com a sensação de que o senhor devia estar
a fazer outra coisa qualquer e que me atendeu assim meio à pressa. Sabe, quando
nós respondemos a uma questão apenas para despachar? Foi o que me pareceu.”
Até ao dia do encontro não houve mais nenhum contacto?
“Não, nem de um lado, nem de outro.
(…) Espere, estava-me a esquecer de que, no dia 8 à mesma hora, o sr.
Biningo ligou para confirmar o encontro.”
Ok, chegamos ao dia 9. Foi um dia normal na embaixada?
“Sim, não me lembro de nada extraordinário.”
Qual, dois dois, Biningo e Zuse, chegou primeiro?
“Foi o sr. Biningo. Chegou perto das 20:30.
O encontro era só às 21:30.”
Porque é que o senhor estava cá?
“Nada de extraordinário, a embaixada fecha as suas portas ao fim do
dia, porque, apesar do atendimento ao público se fazer só até às 16:30, o staff
continua por lá sempre até às 18. Eu aceitei o convite do diretor para ser eu a
fazer o serviço, já que tinha acompanhado todo o processo. Nós não temos
guarda-noturno, pelo que não estaria cá ninguém à hora do encontro.
Como picamos o ponto, podemos avançar horas de trabalho. As horas que
se fazem a mais num dia poderão ser úteis noutro qualquer. Acaba por ser um
investimento.
Nessa noite trouxe jantar e fiz seguido, desde o almoço até me ir
embora à noitinha, depois de a polícia me ter deixado ir para casa.”
“Para além disso, são tão raras as vezes que o nosso diretor nos pede
para ficarmos até mais tarde, que até ficava mal recusar.”
Então quer dizer que foi do seu patrão a iniciativa de pô-lo a fazer
essa noite?
“Exatamente.”
Quando o sr. Biningo chegou, o senhor já estava sozinho?
“Já há umas duas horas, mais ou menos.”
Descreva-me o sr. Biningo.
“Alto (1, 90m mais ou menos), negro, mas com rosto sem traços
característicos africanos, apenas a cor, até o cabelo era liso, ondulado,
comprido, falava um inglês com sotaque que me pareceu acrioulado, mas ao mesmo
tempo afrancesado, esquisito, dentes muito brancos, barba feita, apenas uma
pera bastante comprida, a terminar com um laço vermelho escuro, mãos com anéis,
casaco negro de cavaleiro cortesão com folhos vermelhos nas mangas, por baixo
do casaco tinha uma túnica negra até aos pés, botas militares negras e
vermelhas, o capuz da túnica (negro por fora e vermelho por dentro), magro,
andar calmo, olhar intenso, sem sorriso. Por momentos pensei tratar-se de uma
brincadeira de Halloween, mas acho que foi o seu olhar que me tranquilizou
quanto à veracidade da coisa.
Compensava o ar dark, com palavras bastante cordiais e uma
movimentação decidida. Até foi simpático.”
Conte-me como foi a sua chegada.
“Estava a adiantar serviço na organização de um evento aqui da
embaixada, nomeadamente na questão da contabilidade, pelo que estava no
escritório dos funcionários (temos um espaço coletivo de trabalho) a inserir
dados numa folha de excel.
Ouvi a campainha. Tocou uma vez apenas. Olhei para o relógio do pc e
vi: 20:30 (certinhas!).
Lembro-me de ter pensado se me teria enganado e dito ao senhor que era
às 20:30.
Levantei-me e dirigi-me para o hall da embaixada. Como tem as paredes
frontais em vidro transparente vi imediatamente que estava alguém no exterior.
Abri e porta e perguntei se era o sr. Biningo. Um acenar silencioso
confirmou-me a sua identidade. Só já no interior lhe ouvi um: Good evening, how
are you? / My name is Crinto Delnhuc Biningo.”
“- Desculpe, mas eu disse-lhe que o encontro era às 20:30?
- Não, não, eu é que gosto de chegar adiantado. A minha presença tão
cedo traz-lhe algum incómodo?
- De maneira nenhuma, posso conduzi-lo à sala que disponibilizámos
para a vossa reunião.
- Agradeço.
Uma vez lá dentro, indiquei-lhe um sofá de que dispomos e…
- Posso-lhe oferecer uma bebida?
- Não, obrigado. Gostava de ficar sozinho até à chegada do sr. Zuse.
Pode ser?
- Sim, não vejo porque não. Se precisar de mim, estarei no hall.
- Promete que não entrará ninguém a não ser o sr. Zuse?
- Sim, prometo. A única porta de acesso a esta divisão é aquela por
onde passámos. Eu estarei ali mesmo e providenciarei para que seja cumprido o
seu desejo. Não custa nada.
- Muito obrigado, por mim, por todos nós.
Com este agradecimento enigmático o deixei sozinho, sentado no sofá.”
Então ninguém entrou durante o tempo de espera?
“Ninguém. Eu fui buscar o pc e sentei-me na secretária da receção que
é mesmo ao lado da dita porta.”
Não ouviu nada de estranho vindo da sala onde ele esteve?
“Nem estranho nem nada. Silêncio total.”
A que horas chegou o sr. Valter Zuse?
“Já passava das 21:30, talvez 21:40.
Como já passava da hora, levantei-me do pc e aproximei-me das vidraças
para ver se via aproximar-se o sr Zuse. Acabei por vê-lo chegar – vinha a pé –
e como não estava perto do pc, não tinha ali nada onde pudesse confirmar a hora
exata da sua entrada na embaixada. Mas devem ter passado apenas uns 10
minutos.”
Como descreve o estado de espírito do sr. Zuse?
“Diria curioso. A olhar muito para todos os lados. Uma certa
nervoseira ansiosa. Mesmo quando entrou na sala, entrou muito devagar, com a
cabeça sempre à frente a controlar movimentos.”
Como estava o sr. Biningo, quando entrou na sala?
“Bati à porta a avisar e entrámos. O sr. Biningo estava sentado no
preciso local onde o deixara uma hora atrás. Na mesmíssima posição. Quando entrámos,
levantou-se devagarinho e cumprimentou o sr. Zuse, estendendo a mão.
Este estendeu-lhe a mão também e a pedido do primeiro e consentimento
de ambos, saí da sala. Fechei a porta e voltei para o meu excel.”
Quando decidiu voltar à sala?
“Tinha passado uma hora, mais ou menos. Não teria ido lá tão cedo, se
o sr. Biningo não me tivesse dito (quando saí da sala) que só pretendia fazer
uma pergunta e oferecer um souvenir ao sr. Zuse, pelo que não demoraria mais de
10, 20 minutos.
Aproximei-me da porta e encostei o ouvido, mas não ouvi nada. Resolvi
bater.
Não tendo obtido reação, abri, entrei e foi então que encontrei o
corpo no chão.”
Como encontrou o corpo?
“Encontrei-o caído no chão de barriga para baixo, com as mãos atrás
das costas como se estivesse algemado – reparei que não estava.”
E o sr. Biningo?
“Nada. Nem o mais pequeno sinal de si.”
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Processo 34920/11V
Primeira fase: Averiguações
Recolha de Testemunhos pela inspetora: Carla Mirtiliosa e equipa
Interrogado: Mário Colares Solvi
Assume-se como a pessoa que detém este cartão identificativo?
“Sim.”
O senhor habita neste lar da 3ª idade?
“Sim, já cá estou há 8 anos.”
O seu quarto é o que está mesmo virado para a fachada da embaixada da
Alemanha?
“É agora, há uns 4 anos, porque antes era a casa de uma senhora que,
dizem, era neta da velha descalça, mas isso é para outra altura.”
Certo. Então diga-me lá o que viu?
“Passavam uns minutinhos das nove e meia quando vi chegar um senhor
que trazia um kispo vestido. Entrou.”
Não viu entrar ninguém antes disso?
“Não senhor, e eu estive sempre à janela, das sete até às onze, são as
minhas horas de ver a rua. Todos os dias estou das 7 às 11 sentado atrás dos
vidros vendo a rua. Passa muita gente. Às vezes nem tanta.
Mas eu tenho registos nos meu cadernos de tudo o que acontece, quem é
que passa, a que horas, (se não houver muito movimento) o que trazem vestido,
se vão com pressa, os carros, as matrículas, os cães, tudo o que der tempo.
Quando há muita agitação, escolho o primeiro movimento onde os meus olhos
poisam e descrevo-o.
É assim que faço. Sou um descritor de movimentos.”
Sei que viu alguma coisa estranha, pouco antes das 10 da noite.
Conte-nos lá. Veja lá se tem algum apontamento dessa altura.
“Tenho aqui, já o tinha preparadinho para vos mostrar. Dia 9, cá está:
21:47, diz assim: «No chão, do lado esquerdo da embaixada, estão a
sair fumos. Nunca vi nada assim. Lembra-me fogo-de-artifício, mas só em nuvem.
Parece que têm luz própria. Começaram a sair no chão do lado do auditório da
embaixada, mesmo como jatos de fumo luminoso, foram-se dirigindo muito
devagarinho à estrada, mas, depois, viraram-se para o mato e seguiram também
lentamente. Desapareceram nessa direção.»
E eu, que até tenho pensado muito nisto, lembrei-me aqui de uma
coisinha.
Será que isto tem alguma coisa a ver com aquilo das pessoas se
desfazerem? Daquela história do moço que se desfez em pó e que alguém viu uma
fila de fumos com luz própria a sair do chão, assim como os que vi. Na
altura, ninguém ligou muito a isso, mas olhe que tem aqui coisa.
Ouvi dizer que o corpo deste também se desfez em pó dali a dias de ter
morrido. No início dizia a família que eram as cinzas da cremação, mas eu
conheço gente lá do crematório e juram a pés juntos que não houve cremação
nenhuma naqueles dias. Isto é uma terra pequena.
Uma tia da minha mulher, que era daqui criada, dizia que tinha visto,
uma noite, uma nuvem sair da terra e fazer-se corpo de pessoa. Cá para mim isto
anda tudo ligado.”
E assim ficam os registos.
Jéssica Chen de Tondela
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