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Translúcidos

Translúcidos

Marisa Lunar


Tenho um currículo cheio de cadeiras soltas que não me conferem nenhum grau académico, apesar de já ter mais créditos reunidos do que os de uma licenciatura. Sempre achei que o meu percurso no mundo das artes não dependia em nada de um título universitário. Por isso, procuro nos currículos de qualquer formação ou curso a disciplina com a mais favorável combinação de 4 fatores: temas, metodologias, professores e horários.

Como faço esta gestão, acabo por apresentar um currículo bastante eclético: se, por um lado, a maioria dos meus diplomas tem a ver com as artes, também tenho alguns nas áreas da botânica, da astronomia, da história, da física e da sociologia.  

Nunca vivi por sonhos profissionais, pelo que sempre tive algum receio em me dedicar a tempo inteiro a uma área só, por isso nunca deixei de atentar nas ofertas de emprego que iam aparecendo, não descurando quase nenhuma área.

Foi assim que encontrei o anúncio: “grupo de teatro Invisível necessita de criativo que não se veja”. Confesso que, assim que o li, pensei “isto é para mim”.

Foi no início de 2003, contactei, marquei a entrevista e lá fui.

Quando entrei, fui encaminhada pelo Lorde Vejamo (LV) para uma sala ao estilo interrogatório policial/mafioso, pequena, com uma mesa com o único candeeiro da sala e uma cadeira de cada lado, (só faltava o fumo típico dos bares underground). Em cima da mesa estavam latas de tinta, pinceis e demais instrumentação, ao lado, um pequeno elefante de borracha.

Houve troca cordial de cumprimentos seguindo-se o sinal para que me sentasse. Pegou na minha ficha de inscrição e confirmou alguns dados comigo. Depois, arrumou muito bem os papéis e enfiou-os numa gaveta da mesa. Apontou para o elefante e disse: “Tem duas horas para fazer desaparecer este animal. Pode usar os materiais que quiser”.

Olhei o elefante durante alguns segundos e depois peguei nele e enfiei-o no bolso. Quando o LV percebeu que era essa a minha estratégia deu uma gargalhada sonora e bem-disposta, alegando que “nunca ninguém tinha feito isso”. Fiquei preocupada sem saber se aquele comentário me era ou não favorável. Depois de rir fitou-me nos olhos. Assim ficámos os dois, silenciosamente, num frente-a-frente que me incomodou. Agora que o conheço melhor, percebo aquele olhar (fica assim sempre que está a pensar – olhar fixo, indiferente).


Passados uns dois minutinhos (que me pareceram horas) lá concretizou: “Realmente, você fez uma gestão adequada da informação disponível, eu pedi-lhe para o fazer desaparecer, não lhe referi que era suposto iludir-me quanto a isso. Tenho a dizer-lhe que foi destemida e o que é ainda mais interessante é que a senti tão espontânea que quase me apetece associar-lhe a coragem a um estado natural. Gosto do seu currículo disperso e multidisciplinar, gosto da sua presença e adorei a sua atitude. Apetece-me não entrevistar mais ninguém e ficar já consigo. Como é, tem disponibilidade para começar amanhã?”

- Mas começar o quê?

- Tenho andado a reunir um grupo associativo de teatro. Focamo-nos na lógica de um teatro invisível, se bem que com possibilidades evolutivas que espero inesperadas para todos.

- Porquê invisível?

- Remar contra a maré: cada vez mais as possibilidades eletrónicas permitem o exuberante, a espampanância. Parece que andam todos a competir pelo lugar mais elevado na hierarquia dos hiperestimuladores. O que nós queremos é sublinhar uma atitude de anti-protagonismo nesse universo e, uma vez que vamos entrar por portas que outros já abriram, sermos protagonistas nalgum tipo de combinação de elementos. O mundo das artes precisa, cada vez mais, do desconcerto.

Com a minha entrada, a que faltava, ficou concluído o grupo de teatro Translúcidos (TL). No dia seguinte, como anunciado, teve lugar a primeira reunião conjunta. Assim começou esta aventura.

Nos primeiros dois anos tivemos, como metodologia de trabalho conjunto, uma tarde semanal de “reflexão”, onde tudo (mesmo tudo!) era discutido. Não podíamos discutir nada no resto do tempo, o chamado “período de aplicação”. De acordo com os nossos estatutos iniciais “o período semanal de reflexão não pode ser dado por concluído enquanto não houver acordo sobre todas as matérias”. Não aconteceu muitas vezes, mas ainda houve uma ou duas em que o “período de reflexão” se arrastou por dois dias.

Apesar desta democraticidade toda, o ambiente não era bom. Os momentos de discussão acabavam por ser bastante dolorosos, desgastantes e até contraproducentes. No entanto, este desgaste do ambiente interno não interferiu no sucesso que fomos tendo em paralelo. Sempre conseguimos separar o espetáculo dos bastidores.

No início de 2005, num desses momentos reflexivos, o LV apresentou uma comunicação ao grupo (na altura já com 15 elementos) com algumas constatações:

- Estive a analisar as atas das reuniões de trabalho e eu fui aquele que mais propostas apresentou. Em todas, por uma questão de respeito aos nossos estatutos, houve discussões acesas. Invariavelmente, acabámos por aceitar a minha proposta original. As alterações que houve às minhas sugestões foram sendo introduzidas pela aplicação das mesmas, ou seja, sempre depois dos momentos de debate. Parece-me que os momentos de discussão, portanto, não nos têm sido proveitosos, antes pelo contrário, temos perdido imenso tempo.

Proponho, em função de tudo isto, que alteremos os nossos estatutos e metodologia de trabalho. Na prática, basta-nos um par na direção geral do grupo, sendo que de todos, em qualquer altura, são bem-vindas as opiniões, sugestões e críticas. Proponho-me e à Marisa Lunar para encabeçarmos os TL. O que vos parece?

Pelo inesperado do tema e pela rapidez com que tudo foi anunciado, ficámos todos assim meio embasbacados. Eu, por me ver envolvida no assunto, fiquei sem saber como reagir. Ele nunca me tinha dito nada das suas intenções. Acabámos por concordar com a proposta e aceitá-la.

Desde então que eu e ele dirigimos o grupo. O ambiente melhorou substancialmente e acho que nos passámos a sentir mais como uma família.

Uma vez que deixámos de ter os turnos de reflexão conjunta, o LV traz-nos sempre (a um ritmo aproximado de dois por semana) “pontos de interesse”, como lhes chama. São coisas que vai descobrindo e que nos vai mostrando, quer sejam imagens da natureza, quer sejam fotos ou vídeos de intervenções artísticas, quer sejam simplesmente ideias, histórias, sempre, claro está, com a temática da invisibilidade.

Esta sua obsessão (saudável) pela invisibilidade já levou a que, na brincadeira, nos refiramos a ele como o-homem-invisível. Tal é que quando algum de nós, por piada, refila contra alguma incumbência, costumamos cantarolar o primeiro verso de uma música do Jorge Palma, “O Homem Invisível decidiu dar cabo de mim”.

Os meus colegas de trabalho não são apaixonados pela ficção inverosímil como eu, por isso, se calhar, não se lembram de um outro homem invisível, nome de livro e personagem de HG Wells (Londres, 1866-1946, autor de obras emblemáticas deste estilo, que ainda hoje servem de cenário à criação de muitas outras, como a Máquina do Tempo, a Guerra dos Mundos e, claro, o Homem Invisível).

Se o legado insubstituível do Vejamo é o da invisibilidade, eu contribuo com a fragmentação. Sempre me apaixonou na arte o valor da perplexidade, aquela angustiante sensação de não estarmos a perceber o que se passa, viciados que somos na linearidade. Fragmentar um discurso, uma história, uma ideia e apresentá-la, assim, num puzzle desfeito, permite que possa ser apreendida assim mesmo, dispersa, ou ser trabalhada pela mente de quem a frui.

Na arte temos sempre duas opções: ou entramos pelas portas que outros abriram e aprimoramos, sublimamos e vitalizamos as suas conclusões ou somos nós a abrir portas. Nós misturamos conscientemente ambas as vertentes: por um lado, costumamos procurar pensamentos alheios que adaptamos, por outro, tentamos ser pioneiros nalgum tipo de combinação entre eles. Ou seja, não inventamos os ingredientes, tentamos é criar um prato original com eles.

Uma das orientações do nosso trabalho tem a ver com o momento em que damos o ensaio de uma peça por terminado (entenda-se ensaio como construção, já que todos os trabalhos são completamente criados por nós) - daí em diante, voltamos apenas a “lembrá-la”. Para a darmos por concluída, uma peça tem de ter duas frentes: a estática, a que dá unidade à peça, permitindo a manutenção de um título, e a dinâmica, a que adaptamos. A dupla finalização é sugestão de um dos TL e é influência direta da sua carreira a solo na área das instalações artísticas.

As suas ideias foram imediatamente aceites, pelo interesse que todos nós sentimos pelas instalações.

Este conceito, integrado no mundo da criatividade já desde os anos 1960, manifesta-se num certo grau de efemeridade e, principalmente, na relação de adaptabilidade com o espaço onde se encontra ou onde acontece, aprofundado de forma sensacionista, no sentido de explorar as mais variadas impressões, podendo mesmo levar ao constrangimento físico. Tendo explodido mundialmente durante a década de 1980, a instalação (ainda que possa ser remontada noutros locais) não tem a natureza de um quadro ou de uma escultura que podem ser facilmente transportados sem perda significativa de informação.

Há instalações de tudo, criadas para todo o tipo de espaços, com explorações odoríferas, tácteis, visuais, com peças de lego, sanitas, garrafas gigantes, flores, tudo misturado, em igrejas, em galerias de arte, em jardins, em ruas, casos há até como o de um artista que encheu de tal forma uma galeria com bolas que ninguém lá conseguia entrar.

É essa herança de adaptabilidade e maleabilidade das instalações artísticas que nos inspira a alterar sempre uma parte dos nossos trabalhos em função do local e tema do acontecimento... um certo tipo de permacultura.

Há uns meses o Lorde deu uma entrevista na rádio local onde falou do nosso trabalho e afirmou que “queremos ter uma ridiculamente grande pegada ideológica e uma ridiculamente pequena pegada ecológica”. Disse no sentido em que não usamos adereços que não façam parte do cenário natural onde apresentamos as peças, pelo que antes, durante e depois do show, nada denota, tirando-nos, a nossa passagem.

A sua afirmação ecológica levou um grupo ambientalista a propor a nossa intervenção no mercado semanal de artes, lá para o segundo semestre do ano.

Neste momento, já começámos a “lembrar” essa peça que levaremos ao mercado, em simultâneo com outras investigações temáticas. Estas investigações podem ser propostas por qualquer um de nós, sendo que o LV tem sempre algumas na manga, se não houver sugestões credíveis.

Andamos a fechar o segundo ciclo de trabalhos (1º só com a invisibilidade, 2º invisibilidade + fragmentação + instalação) e para decidirmos a nossa orientação futura temos de investigar caminhos.

Foram distribuídos dois temas: Op Art e Anamorfose. Até algum destes ser o que incluiremos nos nossos projetos futuros tem de passar por várias etapas de aprovação geral, definidas por mim e pelo LV. Começámos por distribuir os elementos do grupo em dois: uns para a Op-Art e os restantes para a Anamorfose. Na semana passada já começámos a ter as primeiras sessões de esclarecimento.

Iniciamos sempre com a pergunta: o que é? Tudo aqui deve ser abordado: origem, ramificações, exploradores, explorações, etc.

Depois de concluída e aprovada esta etapa passaremos à seguinte: há muitas aplicações em teatro? Se chegarmos à conclusão de que é uma área pouco explorada, permitindo ainda muitas possibilidades, poderemos adotá-la. Resta-nos, ainda, o estudo de cada exemplo aplicado, já conhecido, para evitar esbarrarmos numa mera repetição de explorações, coisa que o Lorde considera “inconcebível num mundo como o nosso onde a informação circula abundante”.

Nas conclusões apresentadas já (em jeito de ação de formação interna) ambos os temas parecem campos férteis ao nível da exploração criativa.

A Op-Art (termo de origem anglófona, que é a redução de optical art, ou arte ótica) explora a relação entre a informação que o nosso cérebro recebe através dos olhos e a forma como a trata, tendo como objetivo explorar as fronteiras entre a ilusão e a realidade, resultando, em muitos casos, em criações minimais. Falsas sensações de movimento e deformação da imagem (que é estática) dão à Op-Art os seus maiores emblemas no sentido de revelar mais um lado cerebral do que emocional.

Apesar de ter explodido em força na década de 1950, uma das primeiras obras óticas, posteriormente considerada como tal, data dos anos 1930, é da autoria de Victor Vasarely (Hungria, 1908 – França, 1997) e consiste numa composição de linhas diagonais a preto e branco, de tal forma arqueadas que nos sugerem, tridimensionalmente, a imagem de uma zebra sentada (chama-se mesmo Zebra).

Este movimento teve como momento antológico a exposição, em 1965, The Responsive Eye (O Olho que responde) onde se divulgaram todos os grandes artistas a considerar, dentre os quais um dos mais emblemáticos, Bridget Riley (Londres, 1931). Esta também explorou a combinação de linhas, mas sem o objetivo de concretizar objetos, antes interessada na sensação de movimento, por vezes também sugerida pela combinação de cores.

O outro tema que andamos a investigar (que me calhou) é a Anamorfose, fenómeno mais complexo, ramificado em diferentes áreas do saber. No caso meramente ótico, verifica-se sempre que, através de espelhos ou lentes, se consegue uma ampliação vertical diferente da ampliação horizontal. Tem, portanto, a ver com a perspetiva com que o olho nos permite a observação. Neste caso, podemos estabelecer paralelos com a pintura mural dos séculos XVI e XVII (exemplo da abóbada da igreja de Santo Inácio, Roma, concebida por Andrea Pozzo em 1665) onde cabe ao observador colocar-se num determinado ângulo para fruir a sensação desejada.

Anamorfóticas são também as lentes que comprimem as imagens (no cinema) para depois recuperarem a forma original na projeção. Sendo que vem da combinação de elementos do léxico grego, o termo Anamorfose representa um certo tipo de transformação associada a recombinações e distorções.

Ao nível da ilusão, que é o que nos interessa, a Anamorfose parte da posição do indivíduo (estendida aqui às formas física, ideológica, emocional, etc.) para permitir diferentes e novas sensações assim que este se reposiciona. (Levei umas imagens do pintor de rua inglês Julian Beever, que pinta no pavimento certas imagens sem sentido de todos os lados menos de um: aí, a sensação de 3D é extraordinária.)

Em suma, a Anamorfose permite ao sujeito-recetor a capacidade de ser gestor do mundo, a partir da constatação de que a sua própria mudança de pontos de vista potencia uma nova interpretação da vida.

Andamos, portanto, a pensar como transformar estes dois temas em tentáculos de um próximo espetáculo.

Hoje não tivemos trabalho presencial, o que acontece algumas vezes por mês, sendo que nestes dias costuma ser distribuído algum TPC. A escolha do dia de hoje prendeu-se com o facto de eu e o LV termos um compromisso. O grupo ecologista que nos contactou para o espetáculo do mercado enviou-nos uma mensagem-convite para concretizar um desejo manifesto do LV, o de conhecer o espaço onde vive a comunidade.

Vivem numa herdade aqui perto, onde têm um grande lago à volta do qual tudo roda. A mensagem convidava “para um piquenique à beira lago e tranquilidade na digestão”. 

Chegámos lá às 11:30. Fomos majestosamente recebidos pelos dirigentes da comunidade que nos revelaram a sua admiração pelo nosso trabalho.



Um grupo de 3 elementos da comunidade (entre eles o guru) ofereceu-nos uma visita guiada por todos os locais intervencionados na herdade enquanto nos ia falando da sua história, ideais, projetos, dificuldades, motivações, etc. A nossa envolvência com o grupo foi-se construindo muito naturalmente e senti que o LV começava a ficar com um comportamento um bocadinho diferente do habitual (de vez em quando parava e fazia um sorrisinho estúpido de olhos fechados, por vezes até um bocadinho constrangedor).

Almoçámos perto da água e depois, quando nos dirigíamos para o interior, o LV dirigiu-se ao líder (que esteve sempre por perto) e disse-lhe para formar um grupo restrito de pessoas. Disse-me para o seguir também, que tinha uma surpresa. Depois de reunir as pessoas sugeridas, o LV fez sinal para que regressássemos ao lago. Reunimo-nos à sua volta.

Quando lá chegámos, o Lorde aproximou-se o mais possível do lago e estendeu os braços, com as palmas das mãos viradas para a água. Passado muito pouco tempo, a água, por baixo das suas mãos, começou a borbulhar (como se fervesse). Ficámos em silêncio, estáticos, a observar. As bolhinhas na água transformaram-se em bolhonas e de repente pequenas cabeças de peixe emergiram enquanto o olhavam fixamente. Ele dobrou-se e meteu as mãos na água. Então foi o festim, peixes de todas as cores, tamanhos e feitios saltavam à sua volta.

Ele ria enternecido, nós olhávamos estarrecidos.

Depois levantou-se e disse-lhes adeus com um gesto. Num ápice desapareceram os peixes e o lago voltou à sua tranquilidade tranquilizante. Nesse momento ele virou-se para nós e disse:

- Imagino que tenham perguntas a fazer-me, por isso, antes de ter de me negar a responder, digo-vos as únicas coisas que me parecem úteis para explicar aquilo a que acabaram de assistir. Tenho a capacidade de comunicar com toda a vida (humana e restante). Não é maldição ou bênção, mas tão só uma competência herdada e desenvolvida. Sobre estes peixes que aqui se encontram no vosso lago, digo-vos que gostam do vosso estar, que sentem, desde que vocês nasceram neste espaço, uma sensação de... paraíso. É só! Mais não poderei acrescentar ao que presenciaram, apenas o sublinhar da vossa extraordinária capacidade de convivência com os seres do lago. Os meus parabéns!


É claro que, perante tal assombro, na viagem de regresso tentei saber mais sobre o assunto. Sempre foi muito fácil trabalhar com o LV e ainda que a sua atitude perante nós nos transmita um terreno de confiança indiscutível, as suas evasivas biográficas sempre foram uma constante.

Não costumo investir na parte assumidamente privada das vidas com que me cruzo, salvo se acontecimentos significativos o justifiquem, por isso, com muita diplomacia, mas inundada de curiosidade, abordei-o.

- Lorde, é claro que não parei ainda de pensar no que aconteceu, a cena com os peixes.

- Sim e imagino, pelo que me parece saber de ti, que estarás curiosa, muito curiosa.

- Estou, obviamente. Quando vi os peixes à tua volta, naquele comportamento confuso (tão pouco à peixe), cheguei a pensar que os gajos lá da comunidade nos tinham posto alguma coisa na comida e que estaríamos para ali a alucinar. Olha, amigo, eu não quero saber o que não me puderes contar. No entanto, convenhamos, uma situação daquelas não se presencia todos os dias.

- Claro que não. Quando decidi comunicar com os peixes do lago, quando decidi expor-me daquela maneira (coisa que raríssimamente faço) àquele grupo de pessoas (sobre o qual falaremos mais tarde), a primeira pessoa em quem pensei foste tu. Sabia que, dada a nossa relação de proximidade, teria de, finalmente, falar-te abertamente de mim. Agradecia, no entanto, que pensasses nisto como um desabafo e guardasses para ti o que te contarei.

- Combinado!

- Vai parecer completamente surreal o que te vou contar...

- Como surreal?

- Digamos que implica aceitares factos que não foste educada para aceitar. Aguentas?

- Força nisso.

- A minha existência vem de tempos idos, desde um episódio inicial da evolução humana, chamado o período mitológico, durante o qual o Homem se foi diferenciando da restante vida ao criar uma consciência global da existência, conseguindo inventar o plural. Nessa altura havia anjos-correio, nessa altura eu nasci, assim, como anjo-correio. Anjo-correio é o nome dado à espécie que estabelecia o contacto direto entre humanos e deuses. Eu era um deles. Não desempenhava nenhum papel especial na nossa espécie, era apenas um deles. Éramos os únicos que viviam em contacto com ambos (deuses e humanos) e foi, justamente, de um desentendimento entre estes dois mundos que nasceu o primeiro demónio terrestre, Nordoom.


A ascensão demoníaca levou a que, pela primeira vez, nós, os anjos (de todas as categorias, não só os correio) nos tornássemos mortais. Desde então que basta um toque físico, mesmo não intencional, entre ambos (anjos e demónios) para que nos desintegremos e façamos a nossa cessação de vida. Além disso, houve uma deturpação de palavras desses tempos, que levam os demónios a achar que nós os queremos eliminar, por isso, eles tentam fazê-lo primeiro.

Por essa razão não me revelo, por ela tenho de (enquanto anjo-correio) permanecer oculto, escondido, impercetível, incorpóreo. É claro que essa dedicação intemporal ao não-reconhecimento inspirou toda a questão artística do invisível, é óbvio que sim.

Mas continuando, temos uma característica evolutiva que nos diferencia das restantes divindades: somos mutáveis. Todos os anjos evoluem por contágio com o mundo com que contactam, ou seja, no nosso caso dos anjos-correio, se nos mantivéssemos demasiado tempo com humanos, começávamos a desenvolver a inteligência emocional.

Sublinho que não temos sentimentos de origem, apenas uma racionalidade total que nos permite também compreender as emoções, ainda que as não sintamos de berço. Quando se deu o eclipse olímpico – o fim do Olimpo e, por consequência, a desintegração da união de deuses e anjos – eu já estava demasiado embrenhado na sociedade humana, pelo que, ao contrário de camaradas meus, foi-me fácil a inserção, devido a essa nossa capacidade, que já te referi, de sermos mutáveis por convivência. Tenho, desde essa altura, evoluído até à quase humanização. Nunca será total, porque sei que a longevidade não me abandonará, ou seja, tirando o referido caso de contacto com a animália demoníaca, nada, a não ser a minha vontade, porá fim à minha vida.

Relativamente ao meu presente, tenho alguns problemas com a minha memória, pois tenho dificuldade em esquecer-me das coisas.

Imaginas o que é ter uns bons milhares de anos de recordações?

Com a inteligência racional que me assiste dos tempos angelicais não me faltam ideias a organizar as noções em que baseio a minha existência. 

O problema é a emoção humana em que já me entendo, que me confunde a hierarquia das prioridades (aquela eterna luta entre o sentir e o pensar) que me baralha nomes, datas, locais, enfim… não é de todo desejável.

E pronto, não te canso mais com o meu relato.

Há alguma coisa que me queiras perguntar para já?

Marisa?

Marisa?

 

 

-

 

(nas capas foram usados trabalhos de Ana Guerreiro)

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