Na distribuição da oferta mundial dos Grupos de Intervenção Paranormal (GIP) associados à ONEK há uma rede organizada de especializações, evitando que dois ou mais GIP da mesma zona se especializem no mesmo. Há, portanto, em todos os GIP da ONEK uma secção especializada.
No nosso caso, temos desenvolvido uma secção de decifração. No entanto, por inexistência próxima de concorrência, andamos a apostar numa outra área, a psicografia. Estamos a tentar, através das atualizações estatutárias, criar um espaço legal que nos permita ter duas (ou mais) secções especializadas.
Resumindo, neste momento somos contactados por outros GIP que nos apresentam questões e transferem serviços, quer relacionados com decifração, quer com psicografia (oficialmente não temos autorização para trabalhar psicograficamente, mas como temos uma Coordenadora Médium Especializada em Psicografia exercemos na mesma). Nós retribuímos em medida semelhante.
Perto de Alfândega da Fé (no distrito de Bragança, Trás-os-Montes), numa herdade, está instalada a sede de uma congénere nossa, os Alfé-GIP.
A especialização dos Alfé-GIP tem a ver com o facto de terem no seu staff elementos ligados à inovação tecnológica, pessoas extremamente criativas e com um conhecimento tecnológico invejável. São liderados por um inventor obscuro, de nome João Falhuc. Obscuro porque, ainda que seja uma pessoa extremamente acessível em ambiente laboral, é impenetrável no que toca à vida privada.
Estes criaram uma secção de gadgets eletrónicos, de tal forma implantados no mercado do paranormal, que sentiram mesmo a necessidade legal de criar uma marca, a Ctefpa (Controlo Tecnológico de Fenómenos Paranormais). É justamente essa a marca que assina o aparelho Star Truque (ST), o protagonista desta grande revolução e que ainda vai dar muito que falar (pois as suas potencialidades estão longe de serem previsíveis). O nome ST é uma homenagem à série Star Trek, dos famosos capitão Kirk e senhor Spock, por ter o teletransporte como inspiração.
Podemos dizer que a história do ST começou há muitos anos, quando em inúmeros círculos do pensamento paranormal se discutia (e ainda se discute) a necessidade de redefinir os conceitos que fundamentam o pacto estabelecido entre humanos e Anúbis e Perséfone, os guardiões do Portal de Pedro. Desde o séc. XII que tem havido cada vez mais interferências inter-mundos indesejadas e esse relaxamento interdimensional tem gerado um acumulado descontentamento a que os elementos da Ctefpa decidiram pôr cobro, começando a estudar a possibilidade de contribuir para a renovação desse pacto.
O ST é o resultado de anos de investigação, com o desenvolvimento de variadíssimos instrumentos a partir de outros preexistentes até ao atual ST (digo atual, porque o ST continuará sempre a ser sujeito a evoluções).
Tiveram de transferir conhecimentos do mundo da impressão de sólidos, mas numa lógica diferente, uma vez que esta opção implicaria ter os materiais disponíveis e isso seria uma tarefa difícil, pois quando se trata de mexer em tempos desfasados, principalmente tempos futuros, torna-se impossível prever os materiais utilizados. A projecção 3D também não serviu como objetivo final, já que se trata de uma tecnologia ilusionista, pois apenas nos dá a sensação de 3D, não concretiza. Porém, foi aprimorada a sua tecnologia com vista a materializar de facto o objeto, quando a evolução das descobertas empurrou nesse sentido. Foram, deste modo, recuperadas estruturas do pensamento orgânico das impressoras de sólidos, que foram associadas a pensamentos mais antigos, como o mítico teletransporte, e a outros mais recentes, como o cinema em 3D.
Tendo estas inovações como ponto de partida, de inspiração, nasceu o ST, o primeiro projetor materializante inter-temporal.
É claro que se o objetivo inicial seria apenas controlar o Portal de Pedro, pois interessava limitar as interrelações etéreas e, se possível, as físicas estabelecidas, cedo os cientistas envolvidos se aperceberam que estavam a conseguir resultados impensados, que estavam a abrir portas imprevistas, mas inquestionavelmente interessantes.
Logo no início, nos primeiros modelos criados, foi aberta a possibilidade de materialização interdimensional, que já existe em casos de possessão, candomblé, orixás e até passagens interdimensionais. O nosso mundo físico sofre constantemente interferências, sendo que o nosso papel, por não conseguirmos estabelecer qualquer tipo de controlo, limita-se a tentar evitar que essa promiscuidade tenha efeitos visivelmente nefastos, tentando ao mesmo tempo compreender os fenómenos.
O desejo geral, no entanto, é controlar os portais que definem os limites da nossa existência contemporânea, ainda que, para isso, tenhamos que romper com os pactos intemporais que regem todas as OMI (Organizações Moleculares Independentes, ou mundos paralelos).
Contudo, a evolução da pesquisa foi sendo determinada pelas inesperadas descobertas que a equipa foi conseguindo. Tendo-se apercebido que o aparelho em que estavam a trabalhar permitia a materialização interdimensional controlada, e apercebendo-se das vantagens que teriam em explorar essa possibilidade, o objetivo inicial foi adiado. Nascia o interesse em “pescar” elementos de outra dimensão, inclusive animados. Contudo, como tal ainda não foi possível de forma controlada, o patamar atual de concretização limita-se aos objetos inanimados.
Como disse o seu inventor, o tal Falhuc, “este passo dado é a diferença entre ter um só canal (que pode ser extremamente interessante e diversificado) e ter uma televisão dotada de interatividade, onde o telespetador deixa de ter uma função meramente recetora, mas torna-se reivindicador consciente da sua própria opção”.
Noutras palavras, trata-se de, não só abrir os portais e esperar o que vier, mas de controlar as próprias passagens. Foi criada a possibilidade de, não só receber e compreender as intervenções paranormais (o que já acontecia), mas de controlar essas mesmas manifestações, escolhendo dimensões, extravasando o Portal de Pedro. E, citando-o, “ainda que o controlo das passagens não esteja assegurado, quem sabe se a partir da nossa descoberta não será possível fazê-lo? O conceito de “pesca” implica áreas nunca antes exploradas de forma tão objetiva, como o controlo de entradas”.
Fizemos, portanto, duas encomendas aos Alfé-GIP e recebemo-las há três semanas, mais-coisa-menos-coisa. O facto de estarmos a falar do futuro e por ainda ser uma atividade com pouca experiência mundial implica termos de ter cuidado e confirmar se o futuro que aqui se nos apresenta corresponde à realidade do nosso futuro, dimensionalmente falando.
Nestes processos ainda pouco esclarecidos temos de garantir que o portal que é aberto vem do nosso futuro mesmo, pois a infinidade de possibilidades é real, podendo, sem grandes dificuldades, acertar no local errado. Por isso enviámo-las para os Moon-GIP de Thimbu (no Butão), onde um grupo de especialistas desenvolveu um método infalível para determinar coordenadas de origem das passagens interdimensionais.
Chegaram pela madrugada de hoje as confirmações do espaço-tempo pretendido. Assim, desde que, pela manhã, entrámos ao serviço que fomos todos convocados para uma única tarefa, analisar os dois documentos do futuro. É a nossa primeira experiência nesta abordagem, a “pescagem” de objetos ao futuro, por isso queremos deixá-la extremamente bem catalogada e registada, até mesmo porque outros GIP estão interessados em saber do resultado do trabalho. Trata-se de facto de uma coisa nova e estamos todos a aprender com ela.
Tudo porque há um tempo fomos contactados pela Centoze para “pescar” dois documentos de determinados espaço-tempo futuros. O contacto, apesar de terem sido usadas as vias de comunicação oficiais da editora, foi feito a título pessoal pelo seu diretor, que nos pediu que os documentos conseguidos lhes fossem entregues em mão e, variadas vezes, sublinhou o lado privado de todo o serviço.
O que me motiva este registo é, justamente, o documento 1, que deixou já hoje expressas preocupações entre nós pelo tema que aborda - do 2 falarei noutra altura, até mesmo porque o cliente só quer ter acesso a ele no final do ano, diz que o conhecimento que daí advirá se o contactar antes do tempo pode interferir no presente de forma pouco saudável…
Este trata-se de uma entrevista onde se denuncia um crime.
Se considerarmos esta prova como válida e a usarmos para fins paranormais, teremos de a considerar válida também como prova de um crime por acontecer, uma evidência. Teremos alguma obrigação ética que nos faça agir judicialmente, denunciar, mesmo quebrando o sigilo profissional?
Ainda, há uma coincidência de pontos entre o nosso cliente (Dr. Astor Flem) e o autor confesso dos crimes da entrevista (Astorin Blong Flemtru) que nos agrava a situação. Não só teremos na mão a possibilidade de evitar um crime, como até o seu autor parece desde já poder ser identificado.
Independentemente de tudo, duvido que a polícia alinhe em algo assim.
Aqui registo o documento publicado no canal KSS, de 2231.
Adeus, pá.
Tiago Kala Danilo
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KSS
BLOCO 2 # secção de entrevistas comentadas # 22/5/2231
Carl Tenzing Figoldes
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"Revelações"
Conversa com Astorin Blong Flemtru
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Introdução
No dia 3 de Maio de 2229, o Centro de Investigação Areológica do POR inaugurou um novo instituto internacional, desta vez em Berlin, com toda a pompa e circunstância. Alguns discursos e um faustoso lanche estavam programados para a efeméride. Pelas 15:00, perante uma sala repleta de nomes importantes da investigação espacial, subiu ao palco Ronnie Santos, a mais conceituada areóloga de sempre, para discursar. Atrás do palco exibia-se, orgulhosamente, uma escultura de 20 metros de altura, com o rosto de J. Posadas, construída com bocados de meteoritos marcianos. Pouco depois de iniciar o seu discurso, a estátua de Posadas tomba.
A iniciativa é interrompida e é aberto um inquérito. Algumas semanas depois começam a falecer alguns dos presentes. Compreende-se então, em nova leitura de dados, que na queda da estátua foi lançado um tipo de composto orgânico misturado com cristais de ferro oxidado, que provocou graves danos pulmonares a todos os presentes. Os mais frágeis são os primeiros e únicos a sucumbir, pois a Associação Internacional de Extremófilos concebe um antídoto que atenua os efeitos da toxicidade.
O inquérito desencadeado revela que a estátua havia sido alterada na sua base, de forma a não aguentar mais de doze horas de pé, coincidindo a sua queda com a inauguração do centro de Berlin. Esta conclusão remete imediatamente para a ideia de atentado. Novas investigações afunilam o leque de nomes com acesso à estátua e, aproximadamente, um ano e meio após o incidente, é detido o autor confesso do crime.
À data da detenção, este trabalhava na Base de Terraformação de Marte “Angelo Secci”(AS), na secção de DGA (Diversificação de Gases Atmosféricos), como técnico de Alterações Genéticas de Plantas e Outros Organismos.
A base AS fica no zona Norte de Marte, no planalto gelado, Planum Boreum, com vista para a vasta planície Vastitas Borealis.
Remetido a um voto de silêncio que durou seis meses, Astoring decidiu quebrá-lo e revelar a sua versão. Escolheu-me para seu interlocutor.
Não sei se são as palavras de um louco, de um criativo, ou do Astoring que assim se assume. Apesar de o “Bloco 2” ser uma secção de entrevistas comentadas, e assim ter acontecido desde sempre, nem eu sei lá muito bem o que dizer sobre tudo isto…
A entrevista
Identifique-se.
“O meu nome verdadeiro é Astorin Blong Flemtru. Nasci em Marte.”
Nasceu numa das bases de terraformação de Marte?
“Não. Nasci em Marte, mesmo.”
Como assim?
“Bem, terei de lhe explicar algumas coisas sobre a História de Marte e, por conseguinte, da Terra.”
Sou todo ouvidos.
“Darwin concebeu uma evolução da vida na Terra a partir dos elementos que tinha disponíveis. Abriu o caminho para se entender que mediante certos condicionamentos a evolução faz-se de forma específica. Não pôde, contudo, imaginar toda a extensão da validade do seu pensamento.
De facto, há aproximadamente 180 000 anos, enquanto o Homo Erectus ainda se estava a adaptar ao meio, numa zona isolada do planeta um dos antropóides revelou-se mais eficaz quanto à capacidade de se compreender no todo circundante, evoluindo ao encontro de formas tecnológicas vanguardistas (ainda hoje), dando origem a uma linhagem que poderíamos chamar do Homem Antigo (HA) - por oposição à linha que vos deu origem, a do Homem Contemporâneo (HC). Tendo-se apercebido do seu isolamento social, esta primeira civilização avançada virou-se para o espaço como forma de expansão, mas, principalmente, como intuito de procurar outras formas de vida complexas e inteligentes com as quais interagir.”
“A nossa história não é comparável à vossa, por completo desajuste cronológico, repare que ainda vocês não tinham sequer inventado a arqueoastronomia (veja a data de Stonehenge!), já nós vivíamos no espaço.
Continuando. Tendo construído uma única nave espacial para toda a pequena e solitária comunidade, o embarque foi total. Por precaução, todos os seus vestígios civilizacionais foram apagados ou transformados em formas de aparente construção natural. O passar dos milénios, com todo o seu processo transformador e camuflador, fez o resto.”
Então quer dizer que partiram da Terra para Marte?
“Sim, conseguimos chegar a Marte e por lá ficámos. O receio de não conseguir chegar mais longe, aliado ao facto de haver uma atmosfera respirável, fez-nos decidir parar por uns tempos em Marte. Seria, inicialmente, apenas um ponto de paragem, mas durou tempo demais.
Na nossa estadia em Marte há duas fases. Na primeira fase, com atmosfera respirável, a comunidade instalou-se à superfície e começou a exploração interior e exterior do planeta. A descoberta de interiores respiráveis e não hostis à vida aumentou a possibilidade de instalação e ocupação civilizacional do planeta. Na segunda fase, com o início da deterioração atmosférica, provocada pela radiação solar, a comunidade dividiu-se. Uns decidiram ficar a residir no interior, outros decidiram partir espaço fora à procura.
O que quer dizer que pode haver outros núcleos civilizacionais noutros locais no universo. Apesar de não dispormos de qualquer registo de vida da parte da comunidade que partiu, acredito que tenham tido sucesso, quaisquer que tenham sido as opções de rota. Pensavam, os que partiram, que poderiam não encontrar tão cedo outro local habitável. Assim, o equipamento espacial utilizado foi concebido para permitir vida no seu interior durante aproximadamente 10.000 anos.”
Não consigo suster a minha curiosidade. Sendo marciano, como diz ser, o que acha de nós, dos que apelida de HC?
“Há um facto curioso na vossa forma de estar, que é a existência de toda uma corrente de saber, ligada à efemeridade e longevidade do gosto: a arte, a glorificação da criatividade ficcionada.”
“Por exemplo, sobre Marte (e espaço em geral) fizeram-se e fazem-se obras de uma inspiração vibrante: Ray Bradbury e as Crónicas Marcianas; “Intelectos poderosos, frios e hostis nos observam”, escreveu Wells, na sua Guerra dos Mundos; David Bowie e o projecto Spiders From Mars; toda a imagística do alien, de Giger à Guerra das Estrelas; enfim, é grande o espólio criativo associado ao mundo extraterrestre... Ah!, e o "Estranho numa terra estranha", belíssimo livro!
Também houve muitas coisas que nos foram erradamente atribuídas, como quando os primeiros sinais de rádio regulares vindos do espaço foram identificados em 1967 pela astrónoma Jocelyn Bell. Pensando serem nossos, ela apelidou-os de LGM1 e LGM2 (sendo que LGM não quer dizer mais do que Little Green Man – o estereótipo do povo marciano que apareceu em centenas de filmes de ficção científica). Soube-se depois que um quasar os provocara.”
Voltando a Marte. Referiu-se à existência de “interiores respiráveis”. O que é isso?
“No processo de solidificação do planeta, formaram-se enormes grutas (de tamanho continental) ligadas à superfície apenas por estreitos e serpenteantes túneis, que atravessavam toda a espessa crosta marciana. O planeta não solidificou da mesma forma que a Terra, mantendo bolsas de ar centrifugado, no topo das grutas, a suportar o peso da superfície.
Lembro-o que enquanto a vida na Terra evoluiu calmamente nos últimos 3,6 biliões de anos, a vida à superfície de Marte teve curta duração. Contudo, esse paraíso marciano, tal como observou o cientista de Stanford, Norman Sleep, teve um ambiente mais hospitaleiro à vida que a própria Terra.
Quando se iniciou o processo degenerativo da atmosfera marciana, as semi-complexas formas de existência encontravam-se espalhadas por quase toda a superfície. Contudo, o processo evolutivo foi interrompido, tendo o estado kleptoplástico sido o referencial preferido. Algumas das suas variantes já teriam começado a explorar o interior marciano esgueirando-se através dos túneis de acesso. Toda a flora do planeta começou a desenvolver-se acompanhando a degradação do ar que viria a transformar Marte no deserto superficial que hoje temos.
Uma vez atravessada a crosta marciana, as raízes encontraram no vácuo dos tectos das grutas a forma de se expandirem para o interior, florestando-o. Simultaneamente com o fim da atmosfera respirável de Marte, os túneis de acesso ao exterior acabaram por ser envolvidos nos processos habituais de sedimentação e fecharam todos, sem excepção. Passaram-se séculos de isolamento com toda a bio-especialização que isso implica.”
Então, pelo que percebi, podemos afirmar que há vida em Marte. Não me refiro à vossa colonização, mas sim a espécies nativas.
“Sim, mas pouco dinâmica. A vida nativa de Marte não é aquilo a que se poderia chamar de vida inteligente. De tal forma que, quando chegámos a Marte, pensávamos que estávamos a iniciar um processo de colonização civilizacional do planeta.”
Não foi?
“Não, deparámo-nos com estruturas arquitetónicas preexistentes, reveladoras de ocupações anteriores.
Deve lembrar-se, com certeza, da “Face (ou Rosto) de Marte”, aquela construção geológica que é o ex-líbris da turistada pareidólica, desde que a sonda Viking I em 1976 a fotografou, bem no coração de Cydonia (10º a norte do equador marciano).
É uma estrutura bastante grande, mas milimetricamente pensada, tendo 3km de comprimento e precisamente metade de largura.
Comprovámos que, foi obra de “alguém”, pelo talhado preciso das rochas e pela coleção de vestígios temáticos encontrados. Os artefactos encontrados atribuem ao local uma ambiência mística, luxuosa e imperial, também dada a posição e dimensão das pirâmides que circundam o “Rosto”.
Seria uma espécie de estação de serviço religioso e de relaxamento existencial (se considerarmos as criaturas racionais que parece também o terem frequentado). Um local para se reconstruir, confessar, penitenciar, partilhar formas de bem-estar, casar e até mesmo para a realização de variadíssimas formas de cerimónias fúnebres, o que demonstra, não um, mas vários credos, não uma, mas várias sociedades, certamente formas de vida completamente diferentes da nossa, da vossa e da marciana nativa, a viver aí noutros cantos quaisquer do universo.”
Mas não poderá a vida interior de Marte estar relacionada com essas civilizações?
“Não. Desde que se compararam as estruturas de ADN entre os fósseis encontrados em Cydonia e as variadíssimas formas elysias da vida interior marciana, que se tem percebido que não há qualquer ponto de contacto entre ambas.
Na evolução até à vida interior de Marte houve uma especialização de hibridez, em que temos criaturas que se movimentam (muito lentamente, quase imperceptíveis), mas têm todas as características vitais de uma planta. Apesar da diversidade formal, toda a vida em Marte assumiu, aproximadamente, esta forma de existência.”
Está-me a dizer que as formas de vida marcianas são uma simbiose entre os nossos mundos animal e vegetal?
“Sim, é mais ou menos isso, em termos de glossário terrestre, Qualquer coisa entre ambas. Eu explico-lhe um ciclo de vida, para perceber melhor.”
“A planta mãe gera o filho no interior. Este morderá a bolsa que o separa do mundo exterior. Uma vez no exterior, a boca fecha e cicatriza para sempre – perde a sua função, pois como planta, deixará de precisar de morder, limitando-se a converter o ar e os seus compostos em ingredientes vitais. Lembram-me a vossa Elysia chlorotica (mas muito mais desenvolvida no processo que a define).
Outra curiosidade é a seguinte: como se deslocam, perderam as raízes. Novamente com uma complexidade superior, aproximam-se daquelas plantas terrestres cujas folhas se transformam em significativos órgãos de absorção. A diferença é que, como se especializaram neste processo, todo o corpo da planta é um órgão de absorção, e não só as folhas.”
Só encontraram vestígios de outras culturas em Cydonia?
“O único outro local onde se encontraram vestígios civilizacionais foi em Fobos, um dos dois satélites naturais de Marte, mas tudo leva a crer que tenham a mesma origem. Crê-se ter sido usado como fonte de informação e controle, pois, convém não esquecer que este satélite passa, num dia normal de Marte, três vezes pelo céu. Por sua vez, Marte, visto de Fobos, permite um quadro de observação directa interessante, pois preenche quase metade do céu desde o horizonte ao zénite.”
Bem, depois destes esclarecimentos sobre a vida marciana, vamos agora falar de si. Conte-nos o seu trajeto até aqui.
“Quando os primeiros satélites artificiais Terrestres começaram a ser lançados pelo espaço, achámos por bem enviar alguém que vigiasse. Calhou-me a missão pioneira e, assim, ainda nos anos 80 do século XX cheguei à Terra. Desde então que tenho mudado de identidade, assumindo as que possam estar de alguma forma em contacto com o mundo da investigação espacial, mas discretas.
A vossa chegada a Marte provocou algum receio na nossa comunidade. Por isso, têm sido enviados reforços para a Terra com o objectivo de ir supervisionando todas as movimentações e intenções relativas ao planeta vermelho.
Hoje somos um grupo de 12 e vamos sendo destacados para diferentes zonas (quer em Marte, quer na Terra) onde seja necessário investigar. Nos últimos dois anos estive na AS, em Marte, a controlar os passos no próprio planeta e tentando boicotar qualquer sucesso na pesquisa do seu interior. Na constatação da impossibilidade de reter a curiosidade humana, concentrámo-nos em procurar algo eficaz que desanimasse a vertente expansionista do pensamento espacial.”
“Assim, foi ganhando corpo a necessidade de ferir mortalmente a inteligência espacial terrestre, aproveitando a própria natureza tóxica da atmosfera marciana.”
OK... OK... Para tentar compreender melhor a origem desta questão, diga-me: a partir de que altura é que se começaram a sentir ameaçados por nós?
“Primeiro, foi toda aquela questão do meteorito, o ALH84001 (a sigla quer dizer que foi o primeiro meteorito a ser encontrado em Allan Hills, na Antártida, em 1984). Até houve um presidente dos EUA, julgo ter sido o Clinton, a dizer poeticamente que o meteorito falava da possibilidade de vida extraterrestre, usando a expressão entusiasmada “desde biliões de anos atrás e milhões de quilómetros de distância”... ehehe.
Adiante. Quando Carl Sagan transformou a Sociedade Planetária, da qual era presidente, no partido Panspermia Project, tornando este num dos mais ramificados por toda a Terra, era óbvio o interesse crescente pelo espaço.
Quando as primeiras naves tripuladas aterraram no planeta e descobriram que das rochas era possível extrair energia e oxigénio e do subsolo era fácil encontrar água para cultivar alimentos, o processo de terraformação tornou-se inevitável.
Dado o excesso populacional da Terra, percebemos a intenção de tornar Marte numa alternativa.
Como sabe, Marte é oito vezes menor que a Terra, e apesar de ter uma atmosfera muito mais rala, com um céu vermelho, (resultado das tempestades de poeira de óxido de ferro que varrem a superfície), as suas características físico-químicas são as que, de todo o sistema solar, mais se aproximam das da Terra, fazendo de Marte o planeta potencialmente habitável mais próximo.
No início, ainda pensámos que não passariam de intenções ficcionadas do pensamento terrestre, pois uma viagem a Marte era uma coisa muito complicada dada a rudimentar tecnologia da altura. Demoravam dois anos e meio a percorrer a distância de 150 milhões de quilómetros que nos separa. Uma viagem tão longa (com a sua ausência de gravidade) provocava disfunções ósseas, musculares e psíquicas nos seus tripulantes e, além do mais, era necessário que os dois planetas estivessem alinhados e próximos, o que só acontece uma vez em cada 26 meses.
No entanto, as descobertas tecnológicas do final século XXI, permitiram ultrapassar tudo isso e o perigo era evidente.
Não pretendo dizer mais nada.”
Muito obrigado.
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