A letra
Bruno Saraiva
Bruno Saraiva, ex-Ministro do Planeamento, figura incontornável no
conceito atual das estradas nacionais, desapareceu na passada terça-feira,
deixando perplexos os investigadores destacados. Foi confirmada a sua presença
na véspera ao jantar, no seu restaurante habitual, e vizinhos do prédio
viram-no subir as escadas em direção a casa. Na terça de manhã já não tomou o
pequeno-almoço na pastelaria da esquina e a sua ausência foi notada logo pelas 09:00, numa reunião online de significativa importância, convocada pelo próprio.
Pelas 10:00, a porta do seu apartamento foi arrombada, mas Bruno
Saraiva já não se encontrava lá. Em cima da mesa da cozinha, com a luz ainda
acesa, estava um diário com apenas 8 dias escritos. No chão, cinzas avermelhadas
"de origem inconclusiva".
Caligrafistas, psicólogos e até historiadores atestam a legitimidade
do documento e afunilam-se na tese do suicídio orquestrado, dramatizado. No
entanto, não há corpo, apenas, como já referi, os 8 dias de diário e as cinzas.
Cito a declaração do investigador.
“Por não conter elementos demasiado íntimos, decidimos tornar público
o diário. Pedimos que o consultem na nossa página ou solicitem cópias nas
esquadras de polícia. Analisem o documento com atenção e, por favor, se vos ocorrer
algo que nos possa ajudar a compreender o sucedido, agradecemos que nos
contactem de imediato. Antes de apresentarmos o relatório final, queremos, com
a vossa ajuda, perceber se observámos este aparente suicídio de todos os
ângulos.”
Na redação do nosso jornal distribuímos as 8 páginas por todos e
conseguimos, de alguma forma, formular uma tese que já enviámos aos serviços de
investigação e que partilharemos convosco na segunda parte deste artigo, que
será publicada no próximo sábado.
Hoje, na primeira parte desta peça a que decidimos chamar “A Letra”,
fazemos esta necessária introdução e, imediatamente a seguir, publicamos na
íntegra as 8 páginas do diário de Bruno Saraiva, em solidariedade com as
entidades responsáveis e na esperança de que os leitores possam também
contribuir para o esclarecimento deste “aparente suicídio”.
Nestes 8 dias a tónica não recai, propriamente, sobre os
acontecimentos do dia em que são escritos, pois Bruno Saraiva nunca usou o
diário diariamente, mas quando o luxo lhe permitia o tempo de atualizar as
escritas. Então, apresenta-nos uma sequência informativa que, de alguma forma,
nos ajuda a fazer a biografia dos seus pensamentos.
Escrito de forma muito acessível, estas 8 páginas levam-nos numa
aventura que tem como ponto de partida uma letra... num sonho.
15 de fevereiro
Na noite que passou voltei a sonhar com esta imagem, que me parece um
símbolo, um mapa, um esquema, ou uma letra, sei lá, sempre envolvida numa nuvem
avermelhada, umas vezes mais transparente, outras mais densa. Desta vez sonhei
que entrava numa qualquer habitação (nublada na minha recordação do sonho) e no
tampo de uma mesa discreta, à direita da porta, estava pintado o símbolo que
refiro. Desde que comecei a reparar nesta recorrência, já registei (com a de hoje)
doze aparições desta imagem nos mais diversos cenários.
É um hábito meu, em períodos de maior consciência de sonhos, ter um
bloco de papel, daqueles com lápis preso, na mesinha de cabeceira, para apontar
tudo o que a minha memória, ainda não distraída para as coisas do dia, retém do
onírico.
Assim, hoje, logo que acordei, peguei no meu bloquinho e transformei o
mais possível em texto-prosa a reunião de toda aquela informação sonhada.
Antes de tudo vou mergulhar na obra de AV, que é o meu porto seguro. Começo
por compilar, do seu pensamento, tudo o que me parece oportuno.
Sou, tenho de o admitir desde já, leitor crítico, mas maioritariamente
concordante, de AV (Alessandrino Vietieg, Bolívia, 1903-1991). Este
neurocientista desalinhado partilha as tendências objetivas que afirmam que os
sonhos não têm significado algum. Contudo, não se radicaliza na totalidade dos
elementos presentes em cada sonho, sendo que, nas suas conclusões, a ausência
de significação exclui detalhes recorrentes, aos quais podemos dar outro tipo
de atenção.
Ainda tive a oportunidade, melhor, o privilégio de assistir a uma das
suas palestras, denominada “Arqueologia da comunicação”, da qual gravei o
excerto que aqui transcrevo:
“O momento em que sonhamos assemelha-se à situação de termos de pintar
uma divisão da casa. É necessário retirar todo o recheio dessa divisão
(mobiliário, objetos) e colocá-lo provisoriamente noutro local. A disposição
temporária do referido recheio corresponde aos nossos sonhos: elementos que
constam na nossa memória, que nos são familiares, mas combinados de uma forma
completamente desprovida de sentido. Porém, se no meio de todo o recheio houver
uma frágil peça de vidro, provavelmente nunca a colocaremos no chão, por baixo
de outros objetos, mas por cima, protegida. Há, em paralelo, referências nos
nossos sonhos que a nossa memória faz com que tenham um comportamento diferente
das restantes, podendo surgir sempre associadas a determinados contextos ou, o
mais comum, serem apenas recorrentes.”
17 de fevereiro
Nas suas investigações, AV estudou pacientes que apresentavam
elementos recorrentes nos seus sonhos, impulsos da memória que puderam ser
traduzidos por alertas, sugestões e, maioritariamente, ajudas para a resolução
de problemas. Conseguiram ser identificados elos de memória entre o sonho e o
sonhador, confirmando recordações muito camufladas e longínquas, mas reais,
extraídas comprovadamente das suas biografias. Esta relação
memória/sonho-recorrente encontra-se magistralmente desenvolvida na sua primeira
obra publicada, “O Tic-Tac da Memória”, em 1957.
Porém, ao longo dos anos e de forma bastante dispersa, foi encontrando
casos em que nada na história de vida do sonhador poderia ter espoletado a
memória sonhada. Ao fim de um número já significativo de ocorrências
semelhantes, AV achou que havia matéria para aprofundamento e mergulhou nas
possibilidades interpretativas do fenómeno.
A necessidade de trilhar outros caminhos, pouco consensuais no mundo
da neurociência, dado que as pesquisas oficiais se tinham, segundo ele,
transformado num “amontoado de becos sem saída”, foi-o cada vez mais empurrando
para opções divergentes de todo o pensamento científico oficial.
Em 1972, após anos de intensa dedicação solitária, uma vez que fora
ostracizado pelos colegas, Alessandrino Vietieg publicou o seu segundo livro,
“Portal em Mim”, onde apresentou as suas radicalmente lúcidas conclusões,
gerando, como reação (mais ou menos esperada), uma campanha de desacreditação e
ridicularização que o excluiria definitivamente dos círculos da comunidade
científica.
Prevendo essa reação e usando a máxima do
perdido-por-cem-perdido-por-mil, AV faz suas as palavras do louco e proscrito
Diógenes de Apolónia, da antiguidade grega, descrevendo o funcionamento da
memória como uma entidade biológica independente que, como qualquer criatura,
luta pela sua sobrevivência. Ou seja, quando a memória pretende que não
esqueçamos algo, usa truques para atingir os seus objetivos. Sonhar é um deles.
AV usa este pensamento como trampolim para, por contraste, a
possibilidade de as memórias sonhadas poderem não ser nossas, mas
interferências exteriores, outras memórias.
Os seus dois únicos trabalhos publicados em livro, os já referidos “O
Tic-Tac da Memória” e “Portal em Mim”, são documentos indispensáveis a quem
quiser aprofundar o tema, para além de que se tornou quase uma moda ter as duas
únicas obras de AV, como que um símbolo da possibilidade de transgredir, um
Ipiranga intelectual.
18 de fevereiro
Se, na sua primeira obra, a nossa capacidade de sonhar é descrita como
um radar, perfeitamente concebido para receber impulsos da nossa própria
memória, na segunda, essa capacidade de receção alarga-se a outras fontes,
exteriores a nós.
No primeiro capítulo de “Portal em Mim”, intitulado Comunicação
Independente, ele aponta, caso a caso, as 3 fontes identificadas, bem como toda
a terminologia apropriada. Fundamenta
muitas das suas conclusões noutras conclusões que, como se poderá ver, não
são consensuais, de todo.
Na primeira fonte ele introduz o sobrenatural. Descreve casos que
estudou, acompanhados de referências, não só da mitologia da Grécia antiga,
onde os sonhos eram vistos como canais de comunicação entre deuses e humanos,
mas também da cristã, referindo o caso de São José (sendo que este recebe, em
sonhos, informações de um anjo sobre o nascimento de Cristo, o semi-deus
messiânico).
Na segunda ele aprofunda o mundo extraterrestre.
Casos de inúmeros pacientes, que receberam imagens recorrentes
relativas ao povo arcturiano, levam-no a assumir os Escritos do Universo (texto
encontrado na Gâmbia, no início do séc. XX) como verdadeiros. Neles refere-se a
existência e convivência do povo arcturiano connosco.
Aos habitantes de Arcturus, o centro de brilho da constelação do
Pastor, a 33 anos-luz de distância do nosso sistema solar, é atribuída a
autoria, não só dos agroglifos encontrados em Inglaterra, como dos geoglifos no
Perú. Relatam os textos que os arcturianos se movimentam entre nós, interagindo
connosco por telepatia, por telecinesia e, a que nos interessa para o caso, por
interferência onírica.
Ainda nesta segunda fonte, ele apresenta um outro caso de um paciente
que terá recebido durante um grande período de tempo a mesma imagem de uma
armadura. Após investigação conjunta descobriram tratar-se da mesmíssima
armadura usada pelo rei de Urântia, uma comunidade intergalática nómada.
O desenho foi encontrado numa isolada congregação do Alaska, a
Fundação Urântia, numa ilustração do seu livro sagrado, “O Livro de Urântia”.
Este texto terá sido escrito em 1930 pelo seu fundador, que recebeu a
informação de extraterrestres, através de estados de consciência recetivos como
a meditação, a viagem astral e, principalmente, os sonhos, comprovando, na sua
atividade onírica, a nossa capacidade de receção de sinais enviados por outra
qualquer forma de existência, até de outro lugar qualquer do universo.
19 de fevereiro
A última fonte de estímulo onírico é a mais complexa, a
interdimensional. Não conseguindo encaixar todos os casos estudados nas fontes
anteriormente referidas, AV abre um ponto novo, o mais arriscado de todos, o
que inclui a possibilidade de recebermos estímulos, principalmente, de outras
realidades temporais.
O ponto em comum dos casos apontados nesta última fonte tem, por um
lado, casos de comunicação entre tempos bastantes díspares, por outro,
estímulos de fontes absolutamente inimagináveis, outras conceções atómicas. O
poder do sonho é de tal forma recetivo aos impulsos intemporais do universo,
que nos oferece respostas para contornar até as leis da física que conhecemos,
as que explicam o tempo e o espaço.
Passando pelas interpretações teosóficas de Blavatsky, AV
fundamenta-se em palavras do Hinduísmo, dando relevância aos 7 Sonhos de Ravana
(imortal rei dos demónios, com 10 cabeças), que representam 7 formas de que a
humanidade dispõe para desafiar a rede de Brahma (divindade que representa o
poder criador de tudo o que existe), individualizando-se e libertando-se até do
todo universal.
- - -
Ontem, mesmo, tive a 3ª e última consulta de hipnotismo regressivo e
procurámos nas minhas recordações, em todos os cantos da minha biografia,
qualquer imagem que se assemelhasse ao símbolo com que tenho sonhado. Não
encontrámos nada que o pudesse ter espoletado, pelo que a ideia de ser um
estímulo da minha própria memória não me parece ser a mais acertada.
Na conclusão das minhas pesquisas às ideias de AV, resumindo ainda
mais o que me parece potencial nas minhas investigações, o símbolo, não sendo
um sinal de mim para mim, terá, necessariamente de ser algo exterior. Quanto às fontes exteriores identificadas em “Portal em Mim” (o sobrenatural, o mundo
extraterrestre e o interdimensional) não tenho ainda clareza de pensamento
suficiente para conseguir ter uma opinião sequer. Preciso de mais informação.
3 de abril
Há dias contactei a Carla Calra, especialista em oniromancia.
Levei-lhe o símbolo, que desenhara no meu bloquinho.
- Conheces isto de algum lado?
- Sou capaz de jurar que sim. Esta talhada de melancia com estas
linhas rudimentares, primitivas, mas com uma certa organização visual,
equilíbrio até...
- Parece-me um esquema de uma montagem qualquer.
- Isso, instruções, mas de quê?... imagem, som, ideia, intenção...
- Instruções de leitura. Deveríamos conseguir ler qualquer coisa, se
calhar.
- Temos então uma letra. (...) Espera, vou ali buscar um livro.
Voltou com um exemplar de uma coletânea de literatura dark, A Grande
Biblioteca. Abriu o volumoso volume e procurou, procurou, procurou...
- Está aqui. Bem me parecia, é do alfabeto Vam-dom.
- Vam-dom?
- Vam-dom é o nome de uma língua que, segundo o que aqui se lê, só os
vampiros conseguem ler, o que fazem instintivamente, sem qualquer aprendizagem. Porém, não foi inventada por eles, mas recuperada de uma antiguidade muito mais remota.
- Consegues traduzir?
- Nem traduzir, nem compreender.
- Como assim?
- Deixa ver se te explico de forma simples. Cada espécie tem certas
capacidades de compreensão devido à forma como o seu cérebro funciona, em articulação com os sentidos, ou seja,
os cães não estão preparados para valorizar certos detalhes como nós, mas
conseguem, por exemplo, interagir com sons que nós nem ouvimos.
- Isso quer dizer que mesmo que conseguíssemos associar esta letra a qualquer outra coisa,
nunca conseguiríamos, verdadeiramente, entender o seu significado?
- É algo do género, sim. Há coisas que só os cães percebem, há coisas
que só nós é que percebemos, há coisas que só os vampiros percebem.
Ainda sobre o alfabeto Vam-dom, explicou-me, os seus carateres são sobrepostos em dois elementos, o contextual, e o instrutivo.
É suposto haver, portanto, uma história a contar e a informação de como agir.
Um alfabeto que combina, curiosamente, o saber e o fazer.
No fim ela fez-me uma cópia de um relato de um episódio da História da
Terra, do tal A Grande Biblioteca, relativo ao período hadeano, onde a minha
letra aparece no fim da página.
“Quando a imensa Adosinda entrou na atmosfera terrestre, o atrito
fê-la desintegrar-se em milhões de excertos. Os ventos espalharam os
componentes de Adosinda por todo o planeta. Da combinação dos seus componentes
com os diferentes cenários ambientais da Terra nasceu toda a vida do planeta,
quer na forma híbrida inicial, quer nas especializações posteriores de animal e
vegetal, entre outros reinos. Todas sucumbiram, vingaram ou evoluíram
naturalmente, exceto uma, cujo rasto se perdeu.”
11 de agosto
Conheço a D Laura, mal, diga-se de passagem, por intermédio de alguns
artistas, amigos meus.
Um dia destes encontrei-a à porta do restaurante onde habitualmente
almoço e, por cortesia, convidei-a a sentar-se comigo. Assim que começámos a
conversar, conversa de circunstância, calhou referir-lhe que durmo pouco e até
entrámos, por sua recetividade, pelo tema do onírico, tendo eu referido o meu
hábito de registar informação dos sonhos.
- Não me diga que tem sonhos recorrentes, o ex-libris da teoria de
Vietieg?
- Sim, há uma letra que me persegue. Conhece a curta, mas intensa,
obra de AV?
Dali nasceu um diálogo, onde descobri na D Laura uma profunda
conhecedora da obra de AV, acrescentando até novos exemplos e ideias ao seu
pensamento.
Então, por sequência natural da conversa, tomei a iniciativa de lhe
mostrar uma foto da letra em causa.
Paralisou.
- Isso é Vam-dom!!!
Partilhei com ela a informação que já recolhera, quer do alfabeto,
quer do documento onde a letra aparece.
Dali fomos a sua casa onde, ao sabor de um chá com licor de poejo,
continuámos a conversa.
De repente parou o discurso e...
- Recuando até à 5ª geração, há alguém na sua família com um
comportamento obcecadamente noctívago, exageradamente resistente a doenças, ou
mesmo com um envelhecimento muito retardado? Investigue na família, contacte
parentes, preferencialmente mais idosos, pois deve haver alguém que tenha uma
ligação ao mundo dos vampiros. Nos requisitos para conseguir interpretar a
letra tem de haver, na sua linhagem, sangue de vampiro.
Acrescentou que eu devo ser uma pessoa especial, pois não basta ter
sangue de vampiro na genealogia, há que ser, também, merecedor, daí serem
pouquíssimos os que recebem estes impulsos. Era uma honra conhecer-me. Para
dispor dela nesta missão de descodificar a letra por mim, pois teria de ser eu mesmo a consegui-lo.
-
Registo excertos de uma mensagem que recebi hoje da minha tia Andreia,
conhecedora de muitos meandros da família:
“O irmão do meu pai, o tio João Maria foi, num Natal, visitar o irmão, que vivia (...) na Islândia. (...) contou que o irmão e família tinham apanhado uma doença que os impedia de apanhar luz do sol.”
29 de agosto
Fui a um templo da Ordem de Calimprez, deusa interplanetária. Para
este culto subterrâneo (fundado pelo sacerdote Sian Solakis, em 1936), o
nirvana realiza-se na plena capacidade de interagir com as linhas físicas do
tempo. Calimprez, a mãe de Ariovaldo, geradora do início do todo, é atualmente
adorada em templos subterrâneos um pouco por todo o universo.
Em 1930, o geólogo do Gabão, Atsu Ngubane, com 34 anos, entra numa
gruta onde é arrastado por uma inesperada corrente subaquática. Aterrou numa
praia intraterrestre e foi recebido numa comunidade MCali (Mensageiros de
Cali), seguidores de Calimprez. Durante 5 anos estudou a cultura MCali,
regressando à superfície com a missão de converter o mundo aos comportamentos
ideais, instruídos pela deusa, renascendo como o sacerdote Sian Solakis.
Perto de Pitões das Júnias (Montalegre, Vila Real), há uma herdade
MCali, onde, por combinação da D Laura, me encontrei com um sacerdote da ordem
local, o Zet Júlio, que me recebeu com grande simpatia e hospitalidade.
Tendo atingido o nível Zet, este sacerdote, de nome Júlio, aplicou-me
uma sessão de hipnose regressiva, técnica que eles aprofundam a níveis
surpreendentes, chamada Hipnose Planetária, pois conseguem regredir ao início
da vida no planeta.
Fez com que me imaginasse sentado numa cadeira, dentro de um invólucro
de vidro transparente e inquebrável. Depois foi-me conduzindo pela minha
própria vida às arrecuas, depois passámos à minha mãe, depois à mãe dela e
sucessivamente até às primeiras mães, às primeiras células.
Fiquei, então, envolvido num clarão transformado em chuva de algo e a
viagem parou. Na minha cadeira sentado, vi-me numa planície coberta por uma
lama borbulhante, da qual saíam pedaços desse algo, meio rochoso, meio vivo,
com cores, padrões e formas muito diferenciados, projetados pelo ar, aterrando
desordenadamente.
Quando caíam, uns solidificavam o chão, outros contorciam-se sobre a
lama, outros agrupavam-se, criando novas entidades, ou simplesmente
escorregavam para dentro da lama que os projetaria momentos depois.
De repente, um dos pedaços, bastante grande, fica no ar, não cai, imobiliza-se. O seu volume titânico eclipsa a luz e todo o movimento se reduz. Abate-se então sobre ele uma estranha e violenta tempestade e a sua forma, vermelha, começa a desintegrar-se. Dali a pouco, o corpo que inicialmente se posicionara por cima de todos os outros, transformou-se numa nuvem cada vez mais dispersa que foi deixando o ar vermelho, até que mesmo esta se dissipou.
15 de setembro
Por não me ter sentido muito bem (e também por uma certa internacionalização do serviço) estou há um tempo em casa,
trabalhando online. Saio para as refeições, mas resguardo-me do resto. Andei, nos primeiros dias, a tomar uns comprimidos que me provocavam uma
sonolência brutal e, quando acabou a primeira caixa, não
renovei. Andava um bocado farto de me deslocar como um zombie e, além do mais,
impediam-me de sonhar.
Na mesmíssima noite do dia em que interrompi o tratamento, dormi
profundamente e sonhei.
Sonhei que estava numa sala, sentado num sofá comprido. Na outra
ponta, um vampiro de ar descontraído, com a letra com que tenho sonhado no seu
braço esquerdo, soprava na minha direção nuvens avermelhadas. Na sua expressão
havia um certo alívio, como de quem passa um testemunho.
Neste meu sonho, porém, a sensação que me invadia não era
amedrontante, mas de revitalização. Como que uma nova oportunidade, sei lá.
Importante sublinhar que, no final do sonho, a mesma letra passara para
o meu braço, desaparecendo do dele.
Refiro que no meu quarto, não no sonho, em frente à cama tenho um
quadro colossal, do australiano John Pik, que é um conjunto de runas sobre um
fundo astral.
Apesar de saber que são letras, sempre preferi olhar para estas runas
Odínicas como se fosse uma pintura abstrata, sempre me quis desligar de
qualquer leitura. Já até várias vezes estive com formas de decifrar runas, mas,
conscientemente, evitei saber o que está escrito nestas do quadro de JPik.
Pois, na manhã após ter sonhado com o vampiro, olhei para elas e emiti
o som “ur raidho eihwaz wunjo”, tendo imediatamente compreendido “o selvagem
que viaja está seguro porque vence”.
Fiquei paralisado.
Lembrei-me, então, de abrir um livro que tenho com imagens de achados
arqueológicos dos sécs. X e XI, onde sabia que havia imagens de runas.
Fui-o folheando e consegui ler todas as imagens, li todas as runas.
Fiquei sem saber o que pensar.
Saí e fui comer.
No caminho cruzei-me com um restaurante chinês e olhei,
distraidamente, para o toldo da entrada. De repente, aquela encruzilhada de
traços fez-me sentido e disse, em voz alta descontrolada, Flor de Lago, o nome
do restaurante, escrito em chinês.
No fervor destas novas competências resolvi passar no Bairro do
Pinhal, onde há uma loja árabe e outra indiana. Passei mesmo rente às montras e
observei os produtos expostos. Consegui ler tudo na perfeição, som e
significado.
15 de setembro
(continuação)
Não me esqueço, também, de ter ouvido um cão ladrar e de ter
compreendido algo vago, além do simples latido. É algo que também terei de
aprofundar.
Voltei para casa, nem comi.
Fui direito ao quarto e peguei no meu bloquinho de apontamentos de
sonhos. Antes de o abrir, ainda estive, algo receoso, a olhá-lo, adiando o
inevitável.
Lá o folheei e, quando me deparei com a letra, na minha cabeça
desenhou-se uma história da origem da vida no nosso planeta. Revi o elemento
vermelho e como se dissipou até ao quase incorpóreo. Informação acessória dava
conta de uma capacidade de nunca gastar força que não fosse supérflua, impedindo
o desgaste molecular e, por conseguinte, qualquer necessidade de reposição
energética. Informação instrumental explicava a fórmula química para atingir
esse estado, o estado de uma forma de vida que vive espalhada por todo o lado,
viaja ao sabor do ambiente, não gasta energias.
Em nova conversa com a D Laura (minha confidente e consultora de todo
este processo) percebi que esta proposta de vida foi rejeitada pelas forças da
harmonia terrestre, por não implicar qualquer necessidade de alimentação, o que
daria origem a uma forma existencial com parâmetros completamente diferentes
das restantes.
Nitidamente superior, esta nova forma de vida que fugia da dicotomia
presa/predador, não podia vingar. Daí ter sido forçada a dissolver-se até à
inexistência. Antes, porém, num último esforço, conseguiu enviar impulsos
reprodutores que, por teia do espaço e do tempo, me vieram parar aos sonhos, por linhagem vampírica e em forma de letra Vam-dom.
Esperará de mim a perpetuação da espécie.
Para concretizá-lo, temos o elemento dinâmico, o instrutivo, da letra do
meu sonho, do qual duas linhas se traduziram na minha mente como elementos químicos, em
fórmula, sendo que, nas restantes, facilmente visualizei o método combinatório
desses mesmos elementos.
Com esta informação reescrita em língua nossa, consegui convencer um
amigo que trabalha num laboratório a concretizar o esquema químico da letra.
Ele ficou extremamente curioso pelo resultado, pois, segundo o próprio “ou isto
não dá em nada, ou dá cabo de ti”.
Houve alguma dificuldade em conseguir todos os elementos e até
encontrar equipamento que permitisse, sem efeitos secundários, combiná-los nas
medidas e momentos definidos.
Hoje, pela noite, injetarei o produto.
O resto se verá...
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