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o Antropocultor


o Antropocultor



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Depois da morte de Nordoom, o primeiro, o mundo dos vampiros entrou em colapso, numa espiral fratricida que dizimou um grande número de famílias.

Quando se restabeleceu a ordem, os líderes das famílias de vampiros sobreviventes uniram-se numa só entidade unicerebral e multissensorial, a Tena, também conhecidos como Lendários, os verdadeiros governantes do mundo interior.

Especificaram cada família em clãs e desde então que garantem a estabilidade governativa de cada um, de forma que cada estirpe vampírica tenha o seu próprio campo de ação, evitando a Tena de ter de interferir nas suas questões internas.

Porém, se acontece um rei não deixar sucessor, natural ou escolhido, a Tena considera o grupo ingovernado, impondo o seu próprio nome. Quando o faz, escolhe sempre alguém não seguidista, com posturas filosóficas diferenciadores do líder anterior, alguém da oposição, garantindo a errância ideológica do submundo.

Para primeiro rei dos ancients, habitantes da caverna Nosgoth, a Tena escolheu Kain, um guerreiro, entusiasta da vampirização mundial, dissonante do solitarismo de Nordoom.

Kain era um vampiro do povo, notável na arte da guerra, mas criado com preceitos familiares de inclusão e diversidade, sendo, não raras vezes, encontrado a conviver com vampiros de outras famílias.

Ao contrário de Nordoom, que limitava muitíssimo a interação entre vampiros e seres humanos, Kain inaugurou um processo mental de passagem em que bastava qualquer membro do seu clã dizer uma determinada palavra em Vam-dom, para saltar de mundos, para além de 7 reais passagens físicas.

Kain defendia que humanos e vampiros deviam poder circular livremente em todos os lugares, tomando consciência mútua da sua existência para que, de uma vez por todas, se estabelecessem regras de convivência. Para tal tinha um plano que o seu curto reinado impediu que se concretizasse.

Numa primeira fase, da qual nunca se avançou, era assumida a inevitabilidade de tempos conturbados no relacionamento intermundos. Houve muitos momentos de choque cultural, até mesmo porque, é incontornável, os vampiros são antropofágicos. No entanto, seria necessário, na sua doutrina, passar esta fase para chegar à seguinte, a do compromisso.

Paralelamente, Kain resolve, definitivamente, um problema constante de provocação na convivência da sua ninhada com uma variante humana chamada hylden, com quem partilhavam a caverna Nosgoth, exterminando-os. Uma vez senhores de todo o espaço, os vampiros do clã de Kain deixaram de se chamar ancients, para assumirem o nome da própria caverna onde viviam, passando a chamar-se vampiros nosgóticos. Kain, por isso, será sempre celebrado como o grande fundador do reino de Nosgoth. Um símbolo eterno.

 


Foi neste ambiente de exaltação de clã que Ottman cresceu. Como todos os vampiros mais novos, suportados por muita velha guarda, via em Kain um ídolo, não só pela sua radicalidade na imposição dos vampiros ao mundo, mas também na afirmação épica do seu nome de clã.

Tendo recebido do seu pai o gosto pelo aprofundamento e a excitação por descobrir soluções, Ottman assumiu desde cedo um papel importante na Comissão Tecno-Existencial Vampírica (o único organismo, interclãs, com contacto direto aos Lendários), na secção linguística.

Prevendo alguma disparidade de intenções no seio da sua própria ninhada, Nordoom recupera a linguagem de uma extinta civilização de origem extraterrestre que habitou a Terra no período hadeano, adaptando-a à sua própria realidade. Dá-lhe o nome Vam-dom e, antes da sua morte, define o seu patamar de substância na capacidade de ser imediatamente lida e compreendida por qualquer vampiro, de qualquer estirpe, sem qualquer aprendizagem.

Nordoom pretendia, com esta língua unificadora, impedir que as visíveis e divergentes naturezas dos vampiros levassem a uma irreversível desunião do submundo. Conseguiu implementá-la ainda durante o seu reinado.

Ao longo dos milénios, porém, foi-se sentindo a necessidade de atualizar a língua Vam-dom. A Tena criou, então, uma comissão linguística que se tem dedicado, até aos dias de hoje, a ir atualizando a língua. O seu trabalho consiste em inventariar e teorizar sobre tudo aquilo em que a língua assenta: a sua estrutura dinâmico-estática, as aproximações gráficas do modelo à sua real aplicação e o novo vocabulário (neologismos, ou sugestões específicas de clãs).

Começando por entusiasmo de grupo, Ottman cedo integrou esta comissão, especializando-se na história da sua própria língua, evidenciando aí uma personalidade de vibrante estudioso.

Pela sua natureza, esta comissão, liderada por dois vampiros de chão, contactava sistematicamente representantes, não só de várias estirpes, mas de quase todas as famílias do seu próprio clã, o que foi dando a Ottman a noção de como os vampiros nosgóticos realmente são, das suas fragilidades, diferenças, angústias e anseios. A sua capacidade de observação e a sua discreta, mas presente, sociabilidade levou o seu valor a ser reconhecido por toda a comunidade vampírica, sendo convidado a fazer comunicações em todo o submundo e, não poucas vezes, convidado para cargos de representatividade até por parte de outros clãs, incluindo os Polidori, o clã mais conservador.

 


Paralelamente ao orgulho tribalista da sua geração pela história nosgótica, fundada em sangue belicista, o pai de Ottman vinha, cada vez mais, a assumir publicamente alguma oposição a Kain.

Quando, em determinado momento de discursos públicos, o pai de Ottman revelou a sua discordância relativamente às misturas intermundos e interclãs de Kain, apelidando-o de “alucinado da unidade”, a sua família foi condenada ao isolamento durante um milénio.

O rei não admitia oposição ideológica. Kain tinha um projeto de governação para o qual aceitava sugestões, debates e até posições polémicas relativamente à sua aplicação, proibindo, porém, qualquer desvio ao mesmo.

O pai de Ottman sabia do apreço do filho pelo rei, talvez por isso não lhe tenha manifestado a sua oposição ao monarca, talvez por isso nunca tenha partilhado com ele a evolução do seu próprio pensamento, que, no final, o levaria a contrariar o projeto de interrelacionamentos de Kain, acabando Ottman por ser apanhado de surpresa (e até de alguma forma se tenha sentido traído pelo pai) aquando do discurso da discórdia.

O exílio forçado da sua família teve um impacto tremendo na personalidade de Ottman, transformando-o numa criatura introvertida, em parte por vergonha, em parte por revolta contra a própria família, cuja responsabilidade no seu ostracismo era evidente, mas também contra Kain, cuja insensibilidade o colocava numa posição de carrasco do seu próprio clã, para promover obstinadamente a integração dos de fora.

Em longas conversas com o seu pai, depois do choque inicial, Ottman tentava, aos poucos, perceber que razões teria o pai para se opor a Kain, personagem aparentemente imaculada, herói do clã e até inspirador de outras façanhas em todo o mundo vampírico. De personalidade tranquila, mas densa, o pai foi, aos poucos, revelando-lhe os argumentos, associados a atitudes de Kain, que o levaram à dissidência com o monarca.

Para além da doutrinação paterna, Ottman reconhecia que sempre sentira grande adoração por Kain, mas que, de facto, nunca o tivera por perto. A única vez que sentiu na pele uma ação do seu rei, foi justamente esta de os exilar naquela caverna presidiária e da forma injusta como o processo fora conduzido, ou seja, tendo tomado conhecimento do discurso dissidente do pai de Ottman, Kain mandou isolar toda a família, sem qualquer hipótese de defesa.

 


Passada a revolta inicial contra o seu pai, contra Kain e contra o destino, Ottman reconheceu a inevitabilidade incontornável do seu prolongado isolamento e dedicou-se ao estudo. Se ainda restavam indícios da sua socialização efetiva e dinâmica, aos poucos mesmo isso foi sendo substituído por uma introspeção obcecada e monótona, favorável à concentração, ao estudo e à especialização.

Como se sabe, os vampiros não sonham. Têm, em paralelo, momentos raros de alucinação em estados de torpor. Então experienciam o inexistente e, por norma, encontram soluções determinantes para as suas longas biografias.

Ottman e família partilhavam a gruta com próltios, pequenos animais bípedes, do tamanho de um cão médio, sem cabeça e com o formato aproximado de uma pêra, mas com asas luminescentes e uma carreira de olhos ao longo de todo o ventre.

Naquela última semana, Ottman sentia algo de diferente no comportamento dos próltios. Os seus voos graciosos pela gruta costumavam deixar rastos de luz que, no conjunto, teciam ondulantes e elegantes teias no ar. Agora os seus rastos de luz pintavam o ar com linhas retas e irritadas.

Naquele dia em particular, despertava Ottman para o quotidiano previsível quando sentiu ondular-se o chão que os seus pés pisaram. Imaginou algum tremor de terra, mas, no comportamento de todos os que partilhavam com ele a gruta, nada evidenciava que se tivessem sequer apercebido do tremor. Sentiu então o seu corpo a elevar-se e as paredes da gruta decompuseram-se em pedaços pequenos, redemoinhando em seu redor. Os próltios vieram voar para junto de si, protegendo-o. A fixação cromática da sua visão foi sendo substituída por uma inconstante ondulação de cores até à completa fusão psicadélica.

Quando, algumas horas depois, tudo foi voltando ao normal, a sua mente despertara para o tema que havia de inspirar toda a sua filosofia política, Nordoom. Ainda que na altura a sua relação com Nordoom fosse bastante incipiente, esta revelação levá-lo-ia a escrever a biografia de Nordoom, onde ele próprio viria a encontrar a inspiração e os fundamentos do que viriam a ser os dois grandes pilares de toda a sua conceção do reino nosgótico: a religiosidade e o isolamento.

 

 

O rosto de Nordoom aparecia-lhe pareidolicamente por todo o lado, nas rochas, nos rastos luminosos dos próltios, nas sombras. Estas aparições constantes confirmavam-lhe a revelação que tivera e assim, aos poucos, foi mergulhando nas leituras e, posteriormente, nas recolhas de depoimentos que foi reunindo sobre Nordoom, o primeiro vampiro, o verdadeiro vampai.

Quanto mais se adensava na biografia de Nordoom, mais ia ficando surpreendido e fascinado com o que ia concluindo da sua personalidade e originalidade. Afinal, Nordoom foi o primeiro da sua raça, não tinha exemplos, parceiros nem contraditórios, ou seja, toda a evolução do seu pensamento, apesar da comunidade por si gerada, foi-lhe acontecendo na mais profunda solidão.

Ottman começa logo por ficar surpreendido pela forma como Nordoom encarava os seres humanos. Sendo que estes eram incontornavelmente a sua única fonte de alimento, via-os como vítimas do processo que o fez nascer. Neste entendimento, o seu respeito pelos humanos era grande, pelo que, percebendo que daí não advinha nenhum mal para os seus, procurava sempre, como lhe chamava, a “decadência da vida” (doentes terminais, idosos, vítimas de guerra ou de catástrofes naturais) para alimentar a sua ninhada.

O que começou como uma possibilidade de se entreter no tempo, transformou-se na sua principal ocupação. O estilo de Nordoom, misterioso, distante, mas atento e protetor foi-se, gradualmente, tornando no seu próprio. A perpetuação das suas ideias, consideradas circunstanciais por uns, conservadoras por outros, mas inovadoras pela grande maioria, foi substituindo, aos poucos, as suas próprias, convertendo Ottman e Nordoom em duas versões da mesma atitude. Diferente só mesmo o elevado nível de cultura geral de Ottman e o amadorismo honesto de Nordoom, sendo que neste caso, fundiu-se a bagagem argumentativa daquele com a espontaneidade deste, numa bombástica e incontornável fórmula original.

A fama da sua autoridade como comentador, biógrafo e seguidor de Nordoom atravessou todos os clãs vampíricos, sempre que foi necessário debater as linhas de pensamento do submundo, sempre que foi pertinente homenagear o primeiro vampiro de sempre.

 


Ottman começa a sua demanda pela recuperação, no reino de Nosgoth, da imagem de Nordoom, cujo amadorismo era, não poucas vezes, referenciado como ingénuo, ainda que natural, dada a circunstância única da sua existência. Ou seja, as suas ideias eram compreendidas e justificadas pela História, mas rejeitadas quando era necessário decidir rumos no submundo.

Era justamente esse paternalismo à volta de Nordoom que Ottman queria combater, atualizando a sua forma de pensar numa espiral de novas ideias que lhe reforçavam todo o pensamento, reivindicando Nordoom como a espinha dorsal do mundo vampírico.

Fundindo aquilo que considera os quatro pilares da vida de Nordoom (a circunstância do seu nascimento, o facto de não ter pares, a sua caraterística de espécie e a sua ação régia), Ottman associa-o inicialmente a Satinus (nome original de Satanás).

Nordoom conseguiu, pela necessidade de rumo espiritual, estabelecer contactos com os Skajh, uma ardente comunidade extraterrestre, adoradora de Satinus, que habitou o nosso planeta no período hadeano. Dotados de uma estrutura atómica única, os Skajh são imunes ao calor, sendo originários, segundo se crê, do núcleo de Cistu, uma estrela mil vezes mais abrasadora do que o nosso sol.

No seu convívio imaterial com os Skajh, Nordoom aprenderia a língua que adaptaria para os seus sob o nome Vam-dom e, segundo Ottman, acabaria por se deixar influenciar pela complexa, mas intensa espiritualidade skajhínia, com a qual facilmente se identificou. Essa identificação leva Ottman a estabelecer toda uma hierarquia de valores e comportamentos ideais, conotados com as mais diversas subdivindades que associa a Satanás, com os quais se identifica inteiramente.

Estabelecendo esta estrutura religiosa, Ottman acredita ter conseguido o único elemento normativo em falta para a autossuficiência do clã, contrapondo-a a qualquer necessidade de contacto intermundos.

Na sequência do seu isolacionismo determinado Ottman encontra aliados nos imateriais elohins, que não são nada favoráveis aos ímpetos miscigenadores de Kain.

Já com o trono nosgótico em vista, Ottman estabelece então um pacto com os elohins, as divindades cósmicas do pensamento, sendo que estes se comprometeram a interceder por ele na Tena, quando fosse o final do reinado de Kain, levando de Ottman a promessa de eliminar as relações intermundos e selar as suas 7 passagens, cujo paradeiro ficaria apenas na posse dos elohins.

 


Terminados os 1 000 anos de exílio, Ottman começa, discreta mas eficazmente, a sua campanha ideológica de oposição ao progressismo de Kain, exaltando as qualidades de Nordoom, o primeiro.

Sob pretexto das suas múltiplas intervenções biográficas de Nordoom (as únicas que lhe permitiram romper o confinamento), no qual se tornara especialista, vai deixando, aqui e ali, sementes de rutura com aquilo a que chama a “desajustada situação nosgótica”.

Extremamente conservador, Ottman lança uma teoria revolucionária de anti-novas-vidas. Uma teoria social estacionária, consubstanciada na imortalidade vampírica, que defendia a proibição de novos nascimentos, excepto em casos de mortalidade de clã significativa. Introduz o conceito SPC “Sustentabilidade Potencial de Clã”, com que defende o estabelecimento do número de membros que cada clã pode comportar.

Kain apercebe-se do fenómeno Ottman e chama-o à sua corte para uma sessão de esclarecimentos. Não dando muito relevo às suas restantes ideias, Kain fica sobremaneira interessado na hierarquia religiosa que Ottman criara, inspirada na vida de Nordoom. De atitude pragmática, Kain percebe que a religiosidade satânica proposta por Ottman não interfere diretamente nos seus planos e que, com algum controlo, até pode ajudar a motivar o reino.

A hierarquia satânica de Ottman incluía 15 divindades menores, subdivididas em três categorias, divindades da mente e da sabedoria, divindades do todo que nos rodeia e divindades da vida e da morte, sendo que, para cada uma, Ottman apresenta-se munido de biografias, histórias e ensinamentos, o que deixa Kain deveras impressionado.

Simultaneamente a esta efervescência pública, Ottman, associado ao pai, com quem no entretanto se aliara por completa sintonia de ideias, faz uma primeira campanha política apoiando a polémica intenção de Kain de terminar com as “caçadas”. Desde o tempo de Nordoom que, satisfazendo a incontornável necessidade de alimento humano, em locais e tempos definidos, festivamente celebrados, os vampiros saiam à solta para caçar e o resultado era a chacina de aldeias inteiras em noites de lua cheia, um rasto de sangue em bocados de corpos pintava estes genocídios planeados.

Conquistou, com esta campanha, a simpatia de Kain, que o pensava do seu lado das fileiras, por contribuir para eliminar mais uma atividade que poderia pôr em causa o seu projeto de aproximação intermundos. Porém, Ottman apenas estava a contribuir para que o seu plano isolacionista fosse cada vez mais sólido.

 


Ottman conseguia identificar todas as falhas do reinado de Kain, as suas inconstâncias e as suas fraquezas e até conseguia propor sugestões e alternativas às suas ideias. O que Ottman não conseguia era enfrentá-lo, era dizer-lhe abertamente que estava errado. Afinal, Kain sempre fora e ainda era o seu ídolo bélico, autor da maior conquista da história do seu clã. Apesar do isolamento tortuoso que passara por sua causa, mas que afinal lhe revelara o seu rumo ideológico, continuava a sentir por ele uma grande admiração. Assim como Nordoom foi o primeiro vampiro e teve de desbravar terreno sozinho, Kain foi o primeiro monarca nosgótico e, à sua maneira (discutível), também teve de afirmar todo um clã no desarmonioso submundo vampírico.

Num encontro de estudiosos de Nordoom, realizado no castelo de Boltec pelo clã mais inacessível de todos, os Polidori, Ottman discursou sobre a maternalidade do primeiro vampiro, da sua angústia permanente por nunca ter conseguido ultrapassar o facto de que a única mulher que lhe dera amor, a sua mãe, fora a sua primeira vítima. Em como isto determinava que, excetuando nas caçadas, Nordoom proibira a caça de mulheres.

Foi justamente esta saída momentânea para Boltec que lhe permitiu sobreviver à epidemia da luz, uma falha geológica que introduziria, na atmosfera cavernosa do seu mundo, partículas solares nocivas à vida vampírica. Até que a Tena pudesse intervir e salvar o que restava de toda a comunidade nosgótica, em pouco mais de duas horas, parte significativa do seu clã ardeu, incluindo a família de Ottman, incluindo Kain, o monarca fundador.

Poucas horas depois desta constatação, ainda em Boltec, Ottman foi circundado pela Tena, que o informou do sucedido e que, apesar de compreender o choque, o convidou a, sem demoras, sentar-se no trono de Nosgoth e governar o reino, uma vez que nenhum descendente de Kain sobrevivera à epidemia.

Entorpecido pelos acontecimentos, Ottman acedeu ao convite, mas, por respeito ao luto do clã, não foi coroado em nenhuma cerimónia festiva e pública, mas em local reservado, apenas com as testemunhas significativas e imprescindíveis à credibilidade do ato.

 


No primeiro encontro milenar, organizado pela Tena, em que Ottman intervém como rei de Nosgoth, ficam definidas as linhas que definiriam todo o seu reinado.

Os Lendários explicaram, nesse encontro, que a decisão de convidar Ottman e não outro nosgótico, foi uma sugestão dos elohins, com que a Tena acabou por concordar pelo seu não seguidismo ideológico relativamente a Kain, o que daria ao seu reinado um cunho muito pessoal.

Ottman propõe, então, a esterilização de todo o clã, sendo só a ele atribuídos poderes geradores, permitindo-lhe controlar o número de nosgóticos, que ele estimou com um SPC de 10 mil indivíduos. Mas a esterilização só entrou em vigor quando o número de nosgóticos foi reposto, o que, devido à epidemia da luz, demorou ainda alguns séculos.

Durante a sua investigação à vida de Nordoom, enquanto procurava os seus vestígios ideológicos e traços físicos por todo o submundo, Ottman foi conhecendo também as histórias dos outros clãs. A reunião de todas essas informações permitiu-lhe construir uma estrutura de regência nosgótica, com o melhor de todos os mundos, em três pontos devidamente fundamentados: a necessidade de limitar a duração de um reino a apenas cinco milénios, a necessidade de atribuir plenos poderes aos reis e, finalmente, a necessidade de mudar de um rei que herda o trono, para um rei que é eleito por todos os membros do clã, democraticamente.

Reconhecendo o efeito que os elohins tiveram na seleção do seu nome, Ottman convida-os a visitar o seu reino durante um período festivo, sendo que, como uma comunidade imaterial, os elohins apenas se fizeram sentir, sincronizadamente, no pensamento dos presentes no evento. Dando então seguimento ao compromisso assumido com estas divindades espaciais, fecha, pessoalmente, todas as 7 saídas físicas do submundo nosgótico e proíbe as saídas do seu clã ao mundo exterior. Entrega então a identificação dos 7 locais aos elohins e toma uma bebida inibidora, que lhe apaga da memória a localização das 7 portas. Só eles ficaram a saber onde se situam.

 


Apesar do elemento democrático presente na sua proposta de futuras eleições de monarcas, durante o seu reinado, Ottman anulou quaisquer hierarquias políticas e, na dinâmica do seu clã, preferiu a rotatividade à democracia.

Tudo passou a ser rotativo.

Toda a política do reino assentava nas cortes, onde todos os nosgóticos, sem exceção, tinham assento de forma rotativa. Todos os anos mudava metade dessa assembleia magna, sempre rotativamente, até todos lá terem estado.

Rotativos também eram os cargos principais de funcionamento do reino, principalmente os que tinham a ver com as celebrações religiosas, momentos importantes de debate e tomadas de decisão. Em função do deus celebrado em cada ano, deviam ser adotadas medidas específicas que o valorizassem.

A religiosidade de Ottman não afirmava a existência de nenhuma das divindades celebradas, apenas as suas histórias, com os seus feitos e as suas lições. Um certo pragmatismo espiritual, digamos.

Poucos séculos depois de ter estabilizado a população do seu clã e de ter passado a ser o único procriador nosgótico, Ottman concentrou-se no seu projeto isolacionista.

O impedimento de visitar o mundo exterior punha em discussão a própria sobrevivência do clã, já que impedia o acesso à fonte de alimento. Ouvidos todos sobre a questão, Ottman decide criar uma estirpe humana, para a qual rapta, da última vez que visita o mundo exterior, alguns casais procriadores.

Desenvolve, então, uma variante humana pouco estimulada, com limitações cognitivas assinaláveis e que, durante todo o seu reinado, serviu de alimento a todos os nosgóticos.

A sua estratégia bem sucedida de criação de humanos em quintas para alimentação, valeu-lhe o cognome de “Antropocultor” e a sua fama chegou a todos os cantos do submundo, tendo dado origem à maior revolução de sempre na relação entre o mundo à superfície e o submundo.

Podemos, sem qualquer receio, falar de uma fase antes de Ottman e uma fase depois de Ottman. Antes, a violência era permanente, a ansiedade pelo alimento, o predador e a presa, tudo fazia parte de uma constante inquietação e atrito entre vampiros e humanos. Depois, com a proliferação das quintas de humanos, o alimento do submundo ficou garantido, sendo que a esmagadora maioria destas comunidades deixou mesmo de vir à superfície.

Ainda hoje lá se mantêm... lá em baixo...

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