“Aterragem completa em 1300 horas”, troou
solenemente nos desafinados comunicadores de toda a unidade. O programa de
aterragem era automaticamente ativado 2000 horas antes da sua conclusão,
anunciando-se de 100 em 100.
O eco produzido pela
reprodução da boa nova ficou ainda um tempo a ondular pelos tubulares
corredores da nave.
A unidade das cápsulas
acordava, com tons suaves, de uma hibernação prolongada iniciando o programa de
despertar dos navegantes ao som de calmos sons naturais, só interrompidos pela
notícia das 1300 horas, que me agarraria de novo à realidade, depois do
tormento angustiante dos sonhos sem fim. Já estava desperto, o meu corpo já
saíra da dormência que a inconsciência ainda reclamava, os olhos turvos, mas já
com significativas aproximações à nitidez.
“1300 horas, está no
tempo certo”, pensei, lembrando-me da calendarização que eu a Júlia delineámos
e programámos.
Ainda na cápsula,
imaginei uma qualquer produção literária que permitisse expulsar de mim todas
estas vidas e momentos que num qualquer ponto do meu cérebro aconteceram. Para
evitar ser desconsiderado, teria de produzir tal texto disfarçado de literatura
assumidamente fictícia, com acrescentos fantasiosos quanto a certos detalhes,
que teriam mesmo de ficar bem camuflados. Uma vez assumido o texto como um
devaneio inverosímil, talvez tudo pudesse ser narrado e, ao contrário do leitor
comum, que leria a obra com o pressuposto da fantasia, acredito que um outro
mais atento fosse capaz de descodificar alguns sinais.
Na véspera da partida,
a equipa reuniu-se pela última vez com os responsáveis máximos da missão e os
representantes da FT. Nessa reunião fomos informados de que dados recentes e
inesperados das rotas de voo implicavam que tivéssemos de seguir uma nova
trajetória, mas que a missão se mantinha inalterada. A única mudança, portanto,
seria no percurso, mas como toda a viagem nos aconteceria em hipersono,
nem daríamos por isso.
Essa nova rota implicava passar perto da galáxia Lohgit, apontada por muitos cientistas como a
mais antiga do universo.
Por estar em zona
remota, Lohgit é das galáxias menos estudadas, sabendo-se apenas que reúne à
sua volta a maior concentração de Poços de Madra de que há registo. Os Poços de
Madra, descobertos recentemente pela iraniana Andi Madra, são semelhantes a
buracos negros, mas compostos por amálgamas de ondulações atómicas de efeito
indeterminado. Pouco se sabe, portanto...
Em pleno agosto,
quando a última eliminatória teve lugar, estava tanto calor logo pela manhã que
até ondulava o chão.
Uma vez dentro do
edifício, fomos (os 25 apurados) conduzidos a uma sala comprida, completamente
vazia, com uma casa de banho em frente, ao fundo. De uma das paredes, através de
uma enorme janela de vidro, via-se um jardim privado e entrava a única luz de
que a sala dispunha. A sala era climatizada.
Na parede da esquerda,
sinalizado, um identificador digital.
Aguardava-nos um
arcturiano com ar técnico.
Nunca tinha visto um,
são altos. Têm apenas um olho esguio no centro da cabeça
em forma de ovo. Tudo o resto é manto. O som da sua voz chegou-nos diretamente
ao cérebro e foi bastante explícito.
Informou-nos que
estávamos ali porque tínhamos conseguido ultrapassar todos os obstáculos que o
programa de seleção previa.
Assim, como a equipa
de navegação se resumiria a 12 elementos, esta seria a seleção final. Muito
simples. Apenas duas instruções: quem sair da sala é eliminado, quem não
inserir a mão no identificador de hora a hora é eliminado. Dure o tempo que
durar... até só restarem 12.
O projeto para que
supostamente seríamos selecionados consistia, grosso modo, numa viagem de longa
duração que teria a primeira paragem em Miranda (lua de Urano), passaria por
diversas galáxias e terminaria em Galateia (lua de Neptuno). Durante essa
viagem, a nave, autonomamente, instalaria pequenas-bases no subsolo, uma etapa do PCE. Nós seríamos o plano B, caso a nave não conseguisse,
por alguma imprevista deficiência técnica, cumprir a missão.
Não percebi que competências
estavam a ser testadas nesta tão decisiva seleção. Aí consolidaram-se as minhas
suspeitas de que não nos era contado tudo, já que, na véspera, a alguns
candidatos foram realizadas inesperadas e suspeitas entrevistas por elementos
da FT e eu não gosto nada deles. Tenho cá a minha ideia de que, sempre que a FT
se mostra muito interessada numa atividade ao ponto de contactar alguém
pessoalmente, a coisa não vai correr bem.
Em 2193 é fundada a FT
(Federação-Terra, liderada desde sempre pelo partido Panspermia Project,
fundado há dois séculos por Carl Sagan), que surge como uma inesperada necessidade planetária,
motivada pelos primeiros contactos regulares com comunidades extraterrestres. É
então que o Programa de Colonização Espacial (PCE) começa finalmente a avançar,
porém só em corpos celestes com os requisitos essenciais à vida humana, definidos
pela FT, que organizava e monitorizava todas as movimentações de entrada e
saída do planeta, através da sua base na Lua.
Em 2229, um atentado
reivindicado por um autóctone marciano faz abalar a confiança no planeta Marte,
que era a grande opção e obsessão da FT para o que chamavam “Os primeiros
passos fora de casa”. Começa então uma nova fase, mais diversificada, na
exploração de outras luas, outros exoplanetas.
A FT começou, então, a
mostrar mais abertura nas propostas de exploração, ainda que na lógica
cosmossustentável do Panspermia Project só se pudesse explorar um corpo celeste
mais distante, se as opções mais próximas estivessem comprovadamente esgotadas.
O domínio político da
FT, porém, sofreria um irrecuperável tombo com a invenção e comercialização, na
década de 2240, dos EGA (Estabilizadores de Gravidade e Atmosfera) de grandes
dimensões, tornando potencialmente colonizável qualquer corpo celeste sólido.
Com esta nova tecnologia, qualquer subsolo perdido nessas galáxias pode manter
uma comunidade por 1 ou 2 milénios, pelo que a imensidão do universo possível
tornou desajustadas e inaplicáveis as restrições da FT à circulação.
O efeito da constatação
desta nova realidade levou à definição até agora inalterada dos limites do
domínio da FT, passando, desde esse momento, a assumir o governo de todo o
sistema solar, não interferindo fora desse perímetro.
A consequência deste ilimitado
novo campo de ação foi a explosão do mercado das naves espaciais, que se viu,
de repente, com a necessidade de responder a novas e incalculáveis realidades
físicas.
Foi este recente clima
de competição industrial que levou à criação de todo o tipo de unidades
exoespaciais, cheias de tecnologia especulativa, potencialmente compatíveis com
as novas realidades, mas, como disse um dos empresários envolvidos, “cheias de
dúvidas quanto à eficácia, pelo que, de cada nova viagem, de cada novo
relatório nascerão certamente novas respostas”.
Até são bastante
confortáveis as cápsulas individuais reservadas para passarmos 3 séculos de
abstinência terrestre e é justamente esta medida de tempo que introduz um problema novo na
equação.
Se alguém fizer uma
viagem plurigeracional, ainda que o seu tempo, tecnicamente chamado Tempo do
Sujeito, fique suspenso, todas as restantes experiências temporais, conhecidas
como Tempo Alheio, decorrem ao ritmo natural. Ou seja, podem passar apenas 3
dias da perceção de vida de cada astronauta e no seu desgaste molecular, mas o
mundo que conhece deixará de existir, pois, na Terra, podem ter passado vários
séculos, 3, no nosso caso.
A problemática
assentou, portanto, na perspetiva do isolamento social a que qualquer viajante
plurigeracional se veria condenado. Para evitar que o perfil dos navegantes se limitasse
a pessoas socialmente desintegradas, que não sentiriam necessidade de regressar
ao tecido social seu contemporâneo, foi necessário criar respostas
convincentes, que ainda estão, e estarão durante muito tempo, em fase experimental.
Para já, a solução mais feliz parece ser o desenvolvimento do projeto Amizade
Eterna, que se traduz na voluntarização de grupos de amigos, na Terra ou noutro
qualquer corpo celeste, que entram em hipersono paralelamente às viagens e só
despertam no momento em que os astronautas regressam.
Independentemente de
haver comunidades de apoio às trajetórias plurigeracionais, uma viagem deste
calibre introduz, inevitavelmente, dúvidas quanto ao contexto sociocultural do
regresso, sendo que a imprevisibilidade é a maior constante do pensamento de
quem viaja. É natural, portanto, que o tema aglutinador dos sonhos de um
astronauta seja a dúvida, a incerteza e a tragédia, já que, apesar de todo o
funcionamento corporal ficar suspenso durante o hipersono, a estrutura do córtex cerebral
(responsável pelos sonhos) mantém-se ativa.
Já após a seleção
final, foi promovida uma sessão de esclarecimento sobre o hipersono. Ficámos a
saber que há uma angústia latente sempre que sonhamos. Esta é provocada pelo desfasamento
entre a multiplicidade de mundos propostos pelos sonhos e a nossa experiência
da realidade. É justamente a curta duração de cada sonho que impede que essa
angústia assuma proporções incómodas.
No caso do hipersono,
em que dormir se transforma num torpor de hibernação longa, o ato de sonhar é
contínuo e apesar de o corpo, durante esse tempo, não movimentar energias que o
consumam, o cérebro não desliga completamente, proporcionando sonhos cujas
narrativas podem durar entre alguns minutos e alguns séculos.
É natural, portanto,
que esta incapacidade de fugir a um determinado cenário sonhado alimente uma
angústia gigantesca, significativa da nossa atividade onírica, principalmente
porque, dada a sua extensão temporal, a confusão entre sonho e realidade é
ainda maior.
Neste momento, em que
ainda estou na cápsula e recupero gradualmente as minhas funções de autonomia
biológica, tenho do que sonhei uma clareza de memória que nunca tive aquando
da minha experiência de vida na Terra. Com receio de que, também aqui, as
memórias se percam, liguei o gravador de voz para registar. Devido ao processo de
passagem da inconsciência à consciência, ainda devo ficar umas 5 horas na
cápsula, pelo que tenho tempo para pensar, organizar e gravar a descrição do
único sonho de que me lembro e que me terá acompanhado, permanente ou
intermitentemente, ao longo destes 3 séculos de viagem, tendo a galáxia Lohgit
por cenário.
Registo sónico 256L:
“O sonho em que vivi
durante todo este tempo épico estabelece um paralelo com a nossa própria
viagem, sendo que nesta reordenação de funções, somos nós o plano A, nunca
estivemos em hipersono e a nossa longevidade não é balizada pelo conceito
tradicional de esperança média de vida.
Sem percalços de
maior, aproximámo-nos de Lohgit. A ansiedade na equipa era visível, pois nunca
ninguém tinha ido e voltado de tal zona do universo.
No primeiro contacto
visual destacaram-se os Poços de Madra como se fossem ilhas à volta de um delimitado
conjunto infindável de estrelas, rodeados por um vazio avassalador e
contrastante. Ao contrário do que se supunha, não são negros, mas divergentemente
coloridos, não têm uma cor fixa, mas um fluxo psicadélico de espirais
cromáticas, ou provocadas pelas ondulações atómicas identificadas por Andi
Madra, ou geradoras das mesmas.
Numa primeira
instância ficámos presos às janelas e extasiados com tanta beleza cósmica. No
meio de uma imensidão monótona de estrelas e marcas celestes, aquele espetáculo
concentrado de luz e cor apanhou-nos um pouco desprevenidos, pelo que ficámos
umas belas horas em silêncio, trocando olhares fascinados, naquela certeza
infantil de que em algo tão belo não pode haver imperfeições. Como estávamos
enganados.
A aproximação a Lohgit
foi provocando perturbações ao sistema de navegação, a começar pela anulação do protocolo que permitia a passagem para o navegador automático,
tornando a nossa presença numa constante imprescindível aos comandos na nave.
Supostamente, na nossa trajetória, faríamos uma curva elegante que evitaria que
nos aproximássemos de Lohgit, permitindo apenas a sua visualização, distante,
mas efetiva. Porém, não conseguimos manter a rota planeada, já que um efeito de
sucção nos empurrava, sem qualquer dúvida, no sentido da galáxia.
Este incontrolável
desvio da nave, que nos transformou em espetadores passivos, foi tendo,
conforme nos aproximávamos de Lohgit, efeitos na nossa perceção do mundo,
liquidificando os sólidos, diluindo os limites físicos das realidades
circundantes, envolvendo tudo num ondular de formas, como se se tivesse aberto
o ralo e tudo fosse escorrendo ou aspirado pelo cano abaixo. O cano era,
percebemos ainda a tempo, um dos Poços de Madra que, exercendo a sua influência,
nos distorcia a realidade numa ondulação constante de reformulações materiais.
Nunca, porém, nenhum de nós perdeu a noção do que se passava, nem da sua
própria integridade física.
Então, em densos, mas
breves segundos de suspensão, um manto de vazio e inércia derramou-se sobre
nós, fundindo realidade com escuridão, num silêncio visceral que tentávamos, a
todo o custo, compreender. A inusitada maleabilidade das nossas carapaças
afunilou-nos numa imersão atómica que, qual rito de passagem, nos fundiu e nos
entornou numa outra realidade cósmica, onde voltámos a equilibrar a noção
plural que temos do mundo com a perceção individual do nosso próprio invólucro.
Voltámos a nós próprios. Voltámos a nos conseguir definir dentro da
razoabilidade dos limites físicos com que sempre nos entendemos.
A nave aterrou,
suavemente e sem mais incidentes, na superfície luxuriantemente tórrida de um planeta
chamado Karvatun Lap, num sistema de estrelas sem rotatividade, como se o
movimento celeste nunca tivesse existido e tudo funcionasse sem órbitas. Como
tudo o resto – assim nos pareceu pela observação que pudemos fazer ao longo do tempo em que vagueámos – também este planeta sofre
incidência térmica fixa, sendo que a estrela que o ilumina está sempre e
permanentemente a iluminá-lo com a mesma intensidade nas mesmas superfícies. Na garantia dessa
certeza baseia-se toda a sobrevivência desta dimensão cósmica.
Antes mesmo de
contactar com qualquer forma de vida, andámos umas duas semanas a explorar o
planeta, confirmando na sua luminosidade inalterada que não há qualquer noção
de rotação associada a este sistema planetário.
Percebemos logo aos
primeiros contactos e pelas projeções térmicas do exterior que, quanto mais nos
aproximávamos de uma certa área do planeta (com a qual poderíamos estabelecer
um paralelo ao nosso equador), mais nos afastávamos do tórrido solo que nos
recebeu. Foi justamente neste clima mais temperado que conhecemos uma equipa de
investigadores Sarfa Lap e aqui mesmo começaria a nossa perdição.
Esguios, altos e com a
tez de um branco aquoso, os Sarfa Lap encontravam-se altamente concentrados nos
seus afazeres (qualquer coisa entre a agricultura e a arqueologia) e nem deram
pela nossa presença. Quando nos revelámos, as suas silhuetas foram, em poucos
minutos, metamorfoseadas em algo parecido connosco, uma espécie de mutação por
mimese que lhes foi acontecendo gradual e naturalmente, mas sem esforço
aparente.
Se nos pareciam
indefinidamente idênticos na sua forma original, com esta sua redefinição
humana ganharam contornos diferenciadores. Ao contrário do que seria de supor,
as suas imagens não nos duplicaram, mas, numa atitude de grande argúcia, foram
buscar às nossas memórias referências visuais daqueles que recordamos com
carinho. Conseguiram, se era esse o efeito desejado, sobrevalorizar o lado
emocional do encontro. Foi como se perdêssemos as defesas e ficássemos
reduzidos a um arrebatamento emocional, para o que contribuíram, decisivamente,
os seus lindos rostos de onde nos observavam sedutores olhos penetrantes.
Confesso que, de
todos, fui o que mais se deixou apaixonar por um dos Sarfas, o que me perscrutou as memórias, transformando-se naquela “pessoa” que, no fundo,
fazia a súmula de tudo o que esteve sempre presente nas paixões da minha vida.
Apesar de reconhecer como transitória a sua imagem, o impulso familiar de um
certo conceito de reencontro, associado certamente ao desespero da solidão
espacial, levou-me a tremer e a querer, sem rodeios, aproximar-me da criatura
de forma humana.
O encontro entre os dois grupos, nós e eles, foi
pragmático e fomo-nos aproximando aos poucos, enquanto ainda decorriam detalhes
da sua transformação física. Os seus modos foram tranquilos, pelo que acabámos por
nos apresentar e até nos sentimos bem acolhidos por aquele grupo de Sarfas que,
curiosamente, não se espantou com a nossa existência. Como que respondendo a
estímulos emotivos, a criatura Sarfa Lap por quem me sentia enormemente atraído
aproximou-se de mim e acompanhou-me, não se esquivando às minhas tentativas de
intimidade.
Independentemente de
tudo o que ia ocorrendo entre os dois grupos, entre nós os dois houve um
paralelo comportamental que excluía tudo o resto naquele desfocar de atenção e
interesse que os primeiros momentos de uma paixão exigem. Tudo parecia supérfluo
e negligenciável, perante a emoção que me dominava e que, em toda a extensão,
parecia correspondida. Dominava-nos, portanto. Apaixonámo-nos.
Na sequência do
momento, o grupo Sarfa Lap levou-nos à sua comunidade que, no paralelo
terrestre, seria uma aldeia de dimensão média. Lá fomos recebidos de forma
indiferente, todos nos cumprimentaram, mas, assumindo a naturalidade da nossa
presença, logo nos esqueceram, compenetrados que estavam nas suas múltiplas e
específicas atividades. Reparámos que dos pontos extremos da dita aldeia eramos
vigiados por Sarfas devidamente equipados por um tipo de armamento completamente
desconhecido. Olharam-nos, inicialmente, com relativo interesse, depois com uma
certa apatia que nos fez crer que, apesar do forte e dissuasor dispositivo
bélico, não estariam muito disponíveis para confrontações.
A minha relação com
Hiuld, a criatura Sarfa Lap com quem me encontrava a coexistir de forma enamorada,
foi confirmada pelos presentes que, por desejo coletivo, nos contratualizaram
para uma vida conjunta e, por iniciativa de Hiuld, nos fixaram em parelha de
luz e sombra, sendo que a nenhum foi atribuído o título de luz ou de sombra,
mas a ambos a sua rotatividade ponderada.
Os dias seguintes
foram passados em família, na minha nova família, que implicava toda uma série
de rotinas difíceis de assimilar, mas como sempre contei com a presença de
Hiuld, foi fácil ir compreendendo a validade de tais tarefas, justificáveis
naquele contexto planetário. O nosso amor cresceu ao ponto de transformar a
minha vida terrestre numa ilusão da memória, um qualquer ponto num passado que
já não me pertencia ou, quiçá, nunca me tivesse pertencido.
Porém, a realidade
havia de me bater à porta e a nossa missão de descoberta e recolha de provas
neste universo paralelo traria à superfície objetivos que, enquanto astronauta
convicto, não podia obliterar.
Quando comuniquei a
Hiuld os meus projetos de exploração do planeta, o seu rosto, pela primeira
vez, empalideceu de receio. Soubemos então, por si, que o planeta era dividido
em dois e que as divisões térmicas tórrido, temperado-quente, temperado-frio,
gélido não eram apenas climatéricas, mas culturais, havendo até um povo chamado
Pai Natal (PN) a habitar a zona escura e fria (temperado-frio, gélido).
Contou-nos então um pouco da sua história e revelou-nos como as suas gentes, os
Sarfa Lap, em tempos um povo guerreiro, expulsaram para a zona escura do
planeta os PN, com os quais, apesar da paz efetiva, nunca mantiveram boas
relações.
Organizámos a
expedição ao hemisfério Karvatun, o lado negro do planeta e lá fomos, nós,
Hiuld e os seus 3 irmãos, Hiltu, Holan, Haildi. Como a sua família se dedicava
ao estudo da geologia do seu próprio planeta, Karvatun Lap, todos concordámos
com a sua presença na expedição.
Soubemos por Holan que deveríamos estar atentos a qualquer movimento, pois os PN não tinham qualquer tipo de organização
policial ou militar, confiando nos seus membros para a manutenção da ordem,
sendo que a cada um era reconhecido o direito de aplicar a lei, numa delegação
de funções que transformava cada PN num militar, num agente da autoridade
autónomo.
Com algum receio, mas
com uma curiosidade ainda maior, avançámos para as trevas, atravessando a zona
quase-escura sem que avistássemos qualquer sinal de vida, o que contrariou as
previsões de Hiuld, já que contava que a nossa presença fosse detetada logo nos
primeiros metros da “invasão”. O silêncio que nos acompanhou nos primeiros dois
dias introduziu a angústia e a dúvida na expedição.
Quanto ao planeta, o
solo fértil do hemisfério Lap foi sendo substituído por uma paisagem cada vez
mais árida e, quanto mais nos embrenhávamos neste mundo, mais o frio se ia
fazendo sentir, sendo que no final do terceiro dia já pisávamos a neve cada vez mais escura que,
dali em diante, cobriria monotonamente toda a paisagem.
Quando, ao fim de uma
semana de caminhada, a luz se começava a tornar rara, ouvimos o primeiro som.
“É uma foarelina, um
animal de estimação dos PN, o que nos revela que teremos um contacto
brevemente.” Assim informou Haildi, o irmão mais novo de Hiuld. Na nossa
mentalidade terrestre, um animal de estimação seria uma criatura ternurenta
como um cão ou um gato, porém o segundo rugido que nos chegou, agora mais
nítido, obrigava-nos a reformular essa ideia.
Antes que pudéssemos
estruturar qualquer tipo de defesa, já três foarelinas nos observavam do cimo
do monte mais próximo. Pareciam girafas, mas invertidas, de pescoço curto, mas
pernas (que contei 6) extremamente elevadas.
Com uma inconcebível
rapidez, tínhamo-las posicionadas ao nosso lado. Da sua boca pendiam fios de
uma baba castanha e das suas narinas saíam nuvens de fumo, acompanhadas pelo
rugir interno e intenso da sua atitude hostil. Deixámo-nos ficar quietos, assim
nos aconselhou Hiuld, até à chegada dos PN.
Poucos minutos depois
da nossa prudente imobilização, sentimos a sombra de 3 PN, o que novamente surpreendeu
Hiuld, pois ao contrário da coletivização extrema dos Sarfa Lap, os PN que não
viviam permanentemente em coletividade seriam guerreiros nómadas solitários.
Com o dobro da nossa
altura e bastante musculados, no que nos pareceram fortalezas vivas, o trio barbudo que
nos observou durante brevíssimos momentos, rapidamente deixou de se interessar
pelo nosso grupo, ao contrário dos seus bichinhos de estimação, que cada vez se
aproximavam mais de nós, exalando um forte odor a canela.
Em dado momento, uma
das foarelinas investiu contra a Júlia, nossa colega de bordo, e sem que alguém
conseguisse reagir, arrancou-lhe um braço. O cocktail composto pelo som múltiplo,
estridente e agressivo dos animais, pelos seus movimentos de ataque
implacáveis, pelo medo instalado nas nossas mentes de presas, pelos gritos de dor dos que, caoticamente, lhes eram brutalmente
arrancados pedaços do corpo, como carcaças disponíveis para a satisfação
alimentar dos seus caçadores, e aquele intenso odor a canela atordoou-me o
cérebro ao ponto de tombar nos braços de Hiuld, que me acarinhou,
retribuindo-me o olhar de impotência. Então perdi os sentidos ou
morri, sei lá. Não me lembro de mais nada.”
Fim de registo.
Quando faltam apenas
30 minutos de tempo de espera na cápsula individual, preparo-me para sair,
finalmente, deste absurdo de sonhos que me ocupou o cérebro nos últimos 300
anos. Antes de sair, cumpro o protocolo metabólico de recuperação dos
movimentos vitais e começo pelas mãos. Estico cada dedo e rodo as mãos, depois
passo aos dedos dos pés, depois aos braços, enfim... sigo as instruções do ecrã interior da cápsula.
Antes de sair,
ainda penso no projeto da Amizade Eterna e em como me vão ser vitais os amigos que
deixei em hipersono, à minha espera. Sei que só em parte o fizeram
por mim, pois ninguém prescindiria da sua vida se não tivesse, como motor
principal, a vontade de fugir à sua própria realidade, inconformado com o
mundo em que nasceu e cresceu, ansiando por novos conceitos de civilização.
3, 2, 1... abrir as
cápsulas.
Não tendo ainda grande
força anímica, sento-me na minha cápsula e aguardo que os meus colegas se
levantem também. Espero, mas nada acontece. Só a minha foi aberta manualmente,
as outras foram apenas abertas automaticamente, minutos depois, mas em nenhuma
vejo qualquer movimento.
No ar, porém, cresce
um angustiante cheiro a canela.
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