leitores

Ida e volta

 


Ida e volta


 “Aterragem completa em 1300 horas”, troou solenemente nos desafinados comunicadores de toda a unidade. O programa de aterragem era automaticamente ativado 2000 horas antes da sua conclusão, anunciando-se de 100 em 100.

O eco produzido pela reprodução da boa nova ficou ainda um tempo a ondular pelos tubulares corredores da nave.

A unidade das cápsulas acordava, com tons suaves, de uma hibernação prolongada iniciando o programa de despertar dos navegantes ao som de calmos sons naturais, só interrompidos pela notícia das 1300 horas, que me agarraria de novo à realidade, depois do tormento angustiante dos sonhos sem fim. Já estava desperto, o meu corpo já saíra da dormência que a inconsciência ainda reclamava, os olhos turvos, mas já com significativas aproximações à nitidez.

“1300 horas, está no tempo certo”, pensei, lembrando-me da calendarização que eu a Júlia delineámos e programámos.

Ainda na cápsula, imaginei uma qualquer produção literária que permitisse expulsar de mim todas estas vidas e momentos que num qualquer ponto do meu cérebro aconteceram. Para evitar ser desconsiderado, teria de produzir tal texto disfarçado de literatura assumidamente fictícia, com acrescentos fantasiosos quanto a certos detalhes, que teriam mesmo de ficar bem camuflados. Uma vez assumido o texto como um devaneio inverosímil, talvez tudo pudesse ser narrado e, ao contrário do leitor comum, que leria a obra com o pressuposto da fantasia, acredito que um outro mais atento fosse capaz de descodificar alguns sinais.

Na véspera da partida, a equipa reuniu-se pela última vez com os responsáveis máximos da missão e os representantes da FT. Nessa reunião fomos informados de que dados recentes e inesperados das rotas de voo implicavam que tivéssemos de seguir uma nova trajetória, mas que a missão se mantinha inalterada. A única mudança, portanto, seria no percurso, mas como toda a viagem nos aconteceria em hipersono, nem daríamos por isso.

Essa nova rota implicava passar perto da galáxia Lohgit, apontada por muitos cientistas como a mais antiga do universo.

Por estar em zona remota, Lohgit é das galáxias menos estudadas, sabendo-se apenas que reúne à sua volta a maior concentração de Poços de Madra de que há registo. Os Poços de Madra, descobertos recentemente pela iraniana Andi Madra, são semelhantes a buracos negros, mas compostos por amálgamas de ondulações atómicas de efeito indeterminado. Pouco se sabe, portanto...

 

 

Em pleno agosto, quando a última eliminatória teve lugar, estava tanto calor logo pela manhã que até ondulava o chão.

Uma vez dentro do edifício, fomos (os 25 apurados) conduzidos a uma sala comprida, completamente vazia, com uma casa de banho em frente, ao fundo. De uma das paredes, através de uma enorme janela de vidro, via-se um jardim privado e entrava a única luz de que a sala dispunha. A sala era climatizada.

Na parede da esquerda, sinalizado, um identificador digital.

Aguardava-nos um arcturiano com ar técnico.

Nunca tinha visto um, são altos. Têm apenas um olho esguio no centro da cabeça em forma de ovo. Tudo o resto é manto. O som da sua voz chegou-nos diretamente ao cérebro e foi bastante explícito.

Informou-nos que estávamos ali porque tínhamos conseguido ultrapassar todos os obstáculos que o programa de seleção previa.

Assim, como a equipa de navegação se resumiria a 12 elementos, esta seria a seleção final. Muito simples. Apenas duas instruções: quem sair da sala é eliminado, quem não inserir a mão no identificador de hora a hora é eliminado. Dure o tempo que durar... até só restarem 12.

O projeto para que supostamente seríamos selecionados consistia, grosso modo, numa viagem de longa duração que teria a primeira paragem em Miranda (lua de Urano), passaria por diversas galáxias e terminaria em Galateia (lua de Neptuno). Durante essa viagem, a nave, autonomamente, instalaria pequenas-bases no subsolo, uma etapa do PCE. Nós seríamos o plano B, caso a nave não conseguisse, por alguma imprevista deficiência técnica, cumprir a missão.

Não percebi que competências estavam a ser testadas nesta tão decisiva seleção. Aí consolidaram-se as minhas suspeitas de que não nos era contado tudo, já que, na véspera, a alguns candidatos foram realizadas inesperadas e suspeitas entrevistas por elementos da FT e eu não gosto nada deles. Tenho cá a minha ideia de que, sempre que a FT se mostra muito interessada numa atividade ao ponto de contactar alguém pessoalmente, a coisa não vai correr bem.

 

 

Em 2193 é fundada a FT (Federação-Terra, liderada desde sempre pelo partido Panspermia Project, fundado há dois séculos por Carl Sagan), que surge como uma inesperada necessidade planetária, motivada pelos primeiros contactos regulares com comunidades extraterrestres. É então que o Programa de Colonização Espacial (PCE) começa finalmente a avançar, porém só em corpos celestes com os requisitos essenciais à vida humana, definidos pela FT, que organizava e monitorizava todas as movimentações de entrada e saída do planeta, através da sua base na Lua.

Em 2229, um atentado reivindicado por um autóctone marciano faz abalar a confiança no planeta Marte, que era a grande opção e obsessão da FT para o que chamavam “Os primeiros passos fora de casa”. Começa então uma nova fase, mais diversificada, na exploração de outras luas, outros exoplanetas.

A FT começou, então, a mostrar mais abertura nas propostas de exploração, ainda que na lógica cosmossustentável do Panspermia Project só se pudesse explorar um corpo celeste mais distante, se as opções mais próximas estivessem comprovadamente esgotadas.

O domínio político da FT, porém, sofreria um irrecuperável tombo com a invenção e comercialização, na década de 2240, dos EGA (Estabilizadores de Gravidade e Atmosfera) de grandes dimensões, tornando potencialmente colonizável qualquer corpo celeste sólido. Com esta nova tecnologia, qualquer subsolo perdido nessas galáxias pode manter uma comunidade por 1 ou 2 milénios, pelo que a imensidão do universo possível tornou desajustadas e inaplicáveis as restrições da FT à circulação.

O efeito da constatação desta nova realidade levou à definição até agora inalterada dos limites do domínio da FT, passando, desde esse momento, a assumir o governo de todo o sistema solar, não interferindo fora desse perímetro.

A consequência deste ilimitado novo campo de ação foi a explosão do mercado das naves espaciais, que se viu, de repente, com a necessidade de responder a novas e incalculáveis realidades físicas.

Foi este recente clima de competição industrial que levou à criação de todo o tipo de unidades exoespaciais, cheias de tecnologia especulativa, potencialmente compatíveis com as novas realidades, mas, como disse um dos empresários envolvidos, “cheias de dúvidas quanto à eficácia, pelo que, de cada nova viagem, de cada novo relatório nascerão certamente novas respostas”.

 

 

Até são bastante confortáveis as cápsulas individuais reservadas para passarmos 3 séculos de abstinência terrestre e é justamente esta medida de tempo que introduz um problema novo na equação.

Se alguém fizer uma viagem plurigeracional, ainda que o seu tempo, tecnicamente chamado Tempo do Sujeito, fique suspenso, todas as restantes experiências temporais, conhecidas como Tempo Alheio, decorrem ao ritmo natural. Ou seja, podem passar apenas 3 dias da perceção de vida de cada astronauta e no seu desgaste molecular, mas o mundo que conhece deixará de existir, pois, na Terra, podem ter passado vários séculos, 3, no nosso caso.

A problemática assentou, portanto, na perspetiva do isolamento social a que qualquer viajante plurigeracional se veria condenado. Para evitar que o perfil dos navegantes se limitasse a pessoas socialmente desintegradas, que não sentiriam necessidade de regressar ao tecido social seu contemporâneo, foi necessário criar respostas convincentes, que ainda estão, e estarão durante muito tempo, em fase experimental. Para já, a solução mais feliz parece ser o desenvolvimento do projeto Amizade Eterna, que se traduz na voluntarização de grupos de amigos, na Terra ou noutro qualquer corpo celeste, que entram em hipersono paralelamente às viagens e só despertam no momento em que os astronautas regressam.

Independentemente de haver comunidades de apoio às trajetórias plurigeracionais, uma viagem deste calibre introduz, inevitavelmente, dúvidas quanto ao contexto sociocultural do regresso, sendo que a imprevisibilidade é a maior constante do pensamento de quem viaja. É natural, portanto, que o tema aglutinador dos sonhos de um astronauta seja a dúvida, a incerteza e a tragédia, já que, apesar de todo o funcionamento corporal ficar suspenso durante o hipersono, a estrutura do córtex cerebral (responsável pelos sonhos) mantém-se ativa.

Já após a seleção final, foi promovida uma sessão de esclarecimento sobre o hipersono. Ficámos a saber que há uma angústia latente sempre que sonhamos. Esta é provocada pelo desfasamento entre a multiplicidade de mundos propostos pelos sonhos e a nossa experiência da realidade. É justamente a curta duração de cada sonho que impede que essa angústia assuma proporções incómodas.

No caso do hipersono, em que dormir se transforma num torpor de hibernação longa, o ato de sonhar é contínuo e apesar de o corpo, durante esse tempo, não movimentar energias que o consumam, o cérebro não desliga completamente, proporcionando sonhos cujas narrativas podem durar entre alguns minutos e alguns séculos.

É natural, portanto, que esta incapacidade de fugir a um determinado cenário sonhado alimente uma angústia gigantesca, significativa da nossa atividade onírica, principalmente porque, dada a sua extensão temporal, a confusão entre sonho e realidade é ainda maior.

 

 

Neste momento, em que ainda estou na cápsula e recupero gradualmente as minhas funções de autonomia biológica, tenho do que sonhei uma clareza de memória que nunca tive aquando da minha experiência de vida na Terra. Com receio de que, também aqui, as memórias se percam, liguei o gravador de voz para registar. Devido ao processo de passagem da inconsciência à consciência, ainda devo ficar umas 5 horas na cápsula, pelo que tenho tempo para pensar, organizar e gravar a descrição do único sonho de que me lembro e que me terá acompanhado, permanente ou intermitentemente, ao longo destes 3 séculos de viagem, tendo a galáxia Lohgit por cenário.

 

Registo sónico 256L:

“O sonho em que vivi durante todo este tempo épico estabelece um paralelo com a nossa própria viagem, sendo que nesta reordenação de funções, somos nós o plano A, nunca estivemos em hipersono e a nossa longevidade não é balizada pelo conceito tradicional de esperança média de vida.

Sem percalços de maior, aproximámo-nos de Lohgit. A ansiedade na equipa era visível, pois nunca ninguém tinha ido e voltado de tal zona do universo.

No primeiro contacto visual destacaram-se os Poços de Madra como se fossem ilhas à volta de um delimitado conjunto infindável de estrelas, rodeados por um vazio avassalador e contrastante. Ao contrário do que se supunha, não são negros, mas divergentemente coloridos, não têm uma cor fixa, mas um fluxo psicadélico de espirais cromáticas, ou provocadas pelas ondulações atómicas identificadas por Andi Madra, ou geradoras das mesmas.

Numa primeira instância ficámos presos às janelas e extasiados com tanta beleza cósmica. No meio de uma imensidão monótona de estrelas e marcas celestes, aquele espetáculo concentrado de luz e cor apanhou-nos um pouco desprevenidos, pelo que ficámos umas belas horas em silêncio, trocando olhares fascinados, naquela certeza infantil de que em algo tão belo não pode haver imperfeições. Como estávamos enganados.

A aproximação a Lohgit foi provocando perturbações ao sistema de navegação, a começar pela anulação do protocolo que permitia a passagem para o navegador automático, tornando a nossa presença numa constante imprescindível aos comandos na nave. Supostamente, na nossa trajetória, faríamos uma curva elegante que evitaria que nos aproximássemos de Lohgit, permitindo apenas a sua visualização, distante, mas efetiva. Porém, não conseguimos manter a rota planeada, já que um efeito de sucção nos empurrava, sem qualquer dúvida, no sentido da galáxia.

 

 


Este incontrolável desvio da nave, que nos transformou em espetadores passivos, foi tendo, conforme nos aproximávamos de Lohgit, efeitos na nossa perceção do mundo, liquidificando os sólidos, diluindo os limites físicos das realidades circundantes, envolvendo tudo num ondular de formas, como se se tivesse aberto o ralo e tudo fosse escorrendo ou aspirado pelo cano abaixo. O cano era, percebemos ainda a tempo, um dos Poços de Madra que, exercendo a sua influência, nos distorcia a realidade numa ondulação constante de reformulações materiais. Nunca, porém, nenhum de nós perdeu a noção do que se passava, nem da sua própria integridade física.

Então, em densos, mas breves segundos de suspensão, um manto de vazio e inércia derramou-se sobre nós, fundindo realidade com escuridão, num silêncio visceral que tentávamos, a todo o custo, compreender. A inusitada maleabilidade das nossas carapaças afunilou-nos numa imersão atómica que, qual rito de passagem, nos fundiu e nos entornou numa outra realidade cósmica, onde voltámos a equilibrar a noção plural que temos do mundo com a perceção individual do nosso próprio invólucro. Voltámos a nós próprios. Voltámos a nos conseguir definir dentro da razoabilidade dos limites físicos com que sempre nos entendemos.

A nave aterrou, suavemente e sem mais incidentes, na superfície luxuriantemente tórrida de um planeta chamado Karvatun Lap, num sistema de estrelas sem rotatividade, como se o movimento celeste nunca tivesse existido e tudo funcionasse sem órbitas. Como tudo o resto – assim nos pareceu pela observação que pudemos fazer ao longo do tempo em que vagueámos – também este planeta sofre incidência térmica fixa, sendo que a estrela que o ilumina está sempre e permanentemente a iluminá-lo com a mesma intensidade nas mesmas superfícies. Na garantia dessa certeza baseia-se toda a sobrevivência desta dimensão cósmica.

Antes mesmo de contactar com qualquer forma de vida, andámos umas duas semanas a explorar o planeta, confirmando na sua luminosidade inalterada que não há qualquer noção de rotação associada a este sistema planetário.

Percebemos logo aos primeiros contactos e pelas projeções térmicas do exterior que, quanto mais nos aproximávamos de uma certa área do planeta (com a qual poderíamos estabelecer um paralelo ao nosso equador), mais nos afastávamos do tórrido solo que nos recebeu. Foi justamente neste clima mais temperado que conhecemos uma equipa de investigadores Sarfa Lap e aqui mesmo começaria a nossa perdição.

 

 

Esguios, altos e com a tez de um branco aquoso, os Sarfa Lap encontravam-se altamente concentrados nos seus afazeres (qualquer coisa entre a agricultura e a arqueologia) e nem deram pela nossa presença. Quando nos revelámos, as suas silhuetas foram, em poucos minutos, metamorfoseadas em algo parecido connosco, uma espécie de mutação por mimese que lhes foi acontecendo gradual e naturalmente, mas sem esforço aparente.

Se nos pareciam indefinidamente idênticos na sua forma original, com esta sua redefinição humana ganharam contornos diferenciadores. Ao contrário do que seria de supor, as suas imagens não nos duplicaram, mas, numa atitude de grande argúcia, foram buscar às nossas memórias referências visuais daqueles que recordamos com carinho. Conseguiram, se era esse o efeito desejado, sobrevalorizar o lado emocional do encontro. Foi como se perdêssemos as defesas e ficássemos reduzidos a um arrebatamento emocional, para o que contribuíram, decisivamente, os seus lindos rostos de onde nos observavam sedutores olhos penetrantes.

Confesso que, de todos, fui o que mais se deixou apaixonar por um dos Sarfas, o que me perscrutou as memórias, transformando-se naquela “pessoa” que, no fundo, fazia a súmula de tudo o que esteve sempre presente nas paixões da minha vida. Apesar de reconhecer como transitória a sua imagem, o impulso familiar de um certo conceito de reencontro, associado certamente ao desespero da solidão espacial, levou-me a tremer e a querer, sem rodeios, aproximar-me da criatura de forma humana.

O encontro entre os dois grupos, nós e eles, foi pragmático e fomo-nos aproximando aos poucos, enquanto ainda decorriam detalhes da sua transformação física. Os seus modos foram tranquilos, pelo que acabámos por nos apresentar e até nos sentimos bem acolhidos por aquele grupo de Sarfas que, curiosamente, não se espantou com a nossa existência. Como que respondendo a estímulos emotivos, a criatura Sarfa Lap por quem me sentia enormemente atraído aproximou-se de mim e acompanhou-me, não se esquivando às minhas tentativas de intimidade.

Independentemente de tudo o que ia ocorrendo entre os dois grupos, entre nós os dois houve um paralelo comportamental que excluía tudo o resto naquele desfocar de atenção e interesse que os primeiros momentos de uma paixão exigem. Tudo parecia supérfluo e negligenciável, perante a emoção que me dominava e que, em toda a extensão, parecia correspondida. Dominava-nos, portanto. Apaixonámo-nos.

 

 

Na sequência do momento, o grupo Sarfa Lap levou-nos à sua comunidade que, no paralelo terrestre, seria uma aldeia de dimensão média. Lá fomos recebidos de forma indiferente, todos nos cumprimentaram, mas, assumindo a naturalidade da nossa presença, logo nos esqueceram, compenetrados que estavam nas suas múltiplas e específicas atividades. Reparámos que dos pontos extremos da dita aldeia eramos vigiados por Sarfas devidamente equipados por um tipo de armamento completamente desconhecido. Olharam-nos, inicialmente, com relativo interesse, depois com uma certa apatia que nos fez crer que, apesar do forte e dissuasor dispositivo bélico, não estariam muito disponíveis para confrontações.

A minha relação com Hiuld, a criatura Sarfa Lap com quem me encontrava a coexistir de forma enamorada, foi confirmada pelos presentes que, por desejo coletivo, nos contratualizaram para uma vida conjunta e, por iniciativa de Hiuld, nos fixaram em parelha de luz e sombra, sendo que a nenhum foi atribuído o título de luz ou de sombra, mas a ambos a sua rotatividade ponderada.

Os dias seguintes foram passados em família, na minha nova família, que implicava toda uma série de rotinas difíceis de assimilar, mas como sempre contei com a presença de Hiuld, foi fácil ir compreendendo a validade de tais tarefas, justificáveis naquele contexto planetário. O nosso amor cresceu ao ponto de transformar a minha vida terrestre numa ilusão da memória, um qualquer ponto num passado que já não me pertencia ou, quiçá, nunca me tivesse pertencido.

Porém, a realidade havia de me bater à porta e a nossa missão de descoberta e recolha de provas neste universo paralelo traria à superfície objetivos que, enquanto astronauta convicto, não podia obliterar.

Quando comuniquei a Hiuld os meus projetos de exploração do planeta, o seu rosto, pela primeira vez, empalideceu de receio. Soubemos então, por si, que o planeta era dividido em dois e que as divisões térmicas tórrido, temperado-quente, temperado-frio, gélido não eram apenas climatéricas, mas culturais, havendo até um povo chamado Pai Natal (PN) a habitar a zona escura e fria (temperado-frio, gélido). Contou-nos então um pouco da sua história e revelou-nos como as suas gentes, os Sarfa Lap, em tempos um povo guerreiro, expulsaram para a zona escura do planeta os PN, com os quais, apesar da paz efetiva, nunca mantiveram boas relações.

 

 

Organizámos a expedição ao hemisfério Karvatun, o lado negro do planeta e lá fomos, nós, Hiuld e os seus 3 irmãos, Hiltu, Holan, Haildi. Como a sua família se dedicava ao estudo da geologia do seu próprio planeta, Karvatun Lap, todos concordámos com a sua presença na expedição.

Soubemos por Holan que deveríamos estar atentos a qualquer movimento, pois os PN não tinham qualquer tipo de organização policial ou militar, confiando nos seus membros para a manutenção da ordem, sendo que a cada um era reconhecido o direito de aplicar a lei, numa delegação de funções que transformava cada PN num militar, num agente da autoridade autónomo.

Com algum receio, mas com uma curiosidade ainda maior, avançámos para as trevas, atravessando a zona quase-escura sem que avistássemos qualquer sinal de vida, o que contrariou as previsões de Hiuld, já que contava que a nossa presença fosse detetada logo nos primeiros metros da “invasão”. O silêncio que nos acompanhou nos primeiros dois dias introduziu a angústia e a dúvida na expedição.

Quanto ao planeta, o solo fértil do hemisfério Lap foi sendo substituído por uma paisagem cada vez mais árida e, quanto mais nos embrenhávamos neste mundo, mais o frio se ia fazendo sentir, sendo que no final do terceiro dia já pisávamos a neve cada vez mais escura que, dali em diante, cobriria monotonamente toda a paisagem.

Quando, ao fim de uma semana de caminhada, a luz se começava a tornar rara, ouvimos o primeiro som.

“É uma foarelina, um animal de estimação dos PN, o que nos revela que teremos um contacto brevemente.” Assim informou Haildi, o irmão mais novo de Hiuld. Na nossa mentalidade terrestre, um animal de estimação seria uma criatura ternurenta como um cão ou um gato, porém o segundo rugido que nos chegou, agora mais nítido, obrigava-nos a reformular essa ideia.

Antes que pudéssemos estruturar qualquer tipo de defesa, já três foarelinas nos observavam do cimo do monte mais próximo. Pareciam girafas, mas invertidas, de pescoço curto, mas pernas (que contei 6) extremamente elevadas.

Com uma inconcebível rapidez, tínhamo-las posicionadas ao nosso lado. Da sua boca pendiam fios de uma baba castanha e das suas narinas saíam nuvens de fumo, acompanhadas pelo rugir interno e intenso da sua atitude hostil. Deixámo-nos ficar quietos, assim nos aconselhou Hiuld, até à chegada dos PN.

 

 

Poucos minutos depois da nossa prudente imobilização, sentimos a sombra de 3 PN, o que novamente surpreendeu Hiuld, pois ao contrário da coletivização extrema dos Sarfa Lap, os PN que não viviam permanentemente em coletividade seriam guerreiros nómadas solitários.

Com o dobro da nossa altura e bastante musculados, no que nos pareceram fortalezas vivas, o trio barbudo que nos observou durante brevíssimos momentos, rapidamente deixou de se interessar pelo nosso grupo, ao contrário dos seus bichinhos de estimação, que cada vez se aproximavam mais de nós, exalando um forte odor a canela.

Em dado momento, uma das foarelinas investiu contra a Júlia, nossa colega de bordo, e sem que alguém conseguisse reagir, arrancou-lhe um braço. O cocktail composto pelo som múltiplo, estridente e agressivo dos animais, pelos seus movimentos de ataque implacáveis, pelo medo instalado nas nossas mentes de presas, pelos gritos de dor dos que, caoticamente, lhes eram brutalmente arrancados pedaços do corpo, como carcaças disponíveis para a satisfação alimentar dos seus caçadores, e aquele intenso odor a canela atordoou-me o cérebro ao ponto de tombar nos braços de Hiuld, que me acarinhou, retribuindo-me o olhar de impotência. Então perdi os sentidos ou morri, sei lá. Não me lembro de mais nada.”

Fim de registo.

 

Quando faltam apenas 30 minutos de tempo de espera na cápsula individual, preparo-me para sair, finalmente, deste absurdo de sonhos que me ocupou o cérebro nos últimos 300 anos. Antes de sair, cumpro o protocolo metabólico de recuperação dos movimentos vitais e começo pelas mãos. Estico cada dedo e rodo as mãos, depois passo aos dedos dos pés, depois aos braços, enfim... sigo as instruções do ecrã interior da cápsula.

Antes de sair, ainda penso no projeto da Amizade Eterna e em como me vão ser vitais os amigos que deixei em hipersono, à minha espera. Sei que só em parte o fizeram por mim, pois ninguém prescindiria da sua vida se não tivesse, como motor principal, a vontade de fugir à sua própria realidade, inconformado com o mundo em que nasceu e cresceu, ansiando por novos conceitos de civilização.

3, 2, 1... abrir as cápsulas.

Não tendo ainda grande força anímica, sento-me na minha cápsula e aguardo que os meus colegas se levantem também. Espero, mas nada acontece. Só a minha foi aberta manualmente, as outras foram apenas abertas automaticamente, minutos depois, mas em nenhuma vejo qualquer movimento.

No ar, porém, cresce um angustiante cheiro a canela.


Nenhum comentário:

Postar um comentário