Apresento-vos o projeto “Pentir”
A ele me dediquei nos últimos tempos.
Por contingências familiares, fiz o meu
12º ano em Tomar. Durante esse ano conheci bem a cidade e rapidamente me
encaixei num grupo de nabantinos que me aceitou e do qual guardo belíssimas
memórias. Nunca mais voltei a Tomar, o tempo passou e os contactos perderam-se.
Todos com exceção do Edgar, o Edgar Xisto, meu colega de turma. Com ele, desde os primeiros
momentos, afinei frequências e mantive um contacto regular apesar das
décadas irem passando.
Um acidente de viação, há pouco mais de
dois anos, levou-nos o Edgar. Antes, pouco tempo antes, passou por Sto André a
caminho do Algarve. Almoçámos juntos e pusemos a conversa em dia. Felicitei-o
pessoalmente pelo êxito do seu abstracionismo, mas ouvi dele a vontade de sair
do jogo. Queria apenas fazer uma última publicação de um livro dos seus últimos
pentátrios (sobrepostos em fotografias). Com isso fecharia um ciclo. Pretendia
passar a ser Foto-Jockey a tempo inteiro, mas que na altura certa me contaria
os detalhes.
O infortúnio impedi-lo-ia de concretizar
o seu projeto, os seus projetos.
Sabendo da sua intenção, contactei os
editores e, com o seu apoio, avancei para a publicação desta coleção, póstuma,
de originais do Edgar Xisto, realizando o seu desejo.
Além dos 15 poemas selecionados,
contamos com duas introduções: uma pelos já referidos editores, que sempre o
acompanharam, e a republicação da introdução de "Como eu gosto de nuvens", assinada pela investigadora Dra Khalidah Janan, sua amiga, "atualizada" pela própria para este efeito.
Finalmente, consegui permissão da Time
Art Today, uma das mais populares publicações de arte contemporânea mundial, para
acrescentar, em jeito de terceira introdução, excertos de uma longa
entrevista feita ao Edgar.
Resta-me agradecer a todos os que
permitiram a concretização deste projeto e aspirar pelo vosso-nosso prazer ao
desfrutá-lo.
Que os limites do direito à diferença nunca sejam definidos por quem não o pratica.
Rui Teresa, 2023
Prezados
leitores
Desde o
pioneiro “Como eu gosto de nuvens, 3 poemas para sentir” que as ideias, as motivações e as formalidades
dos Poemas-para-sentir de Edgar Xisto (EX) foram vertiginosamente ampliadas,
dando origem ao já incontornável movimento literário, Abstracionismo 21.
Apesar
da dimensão mundial e dos seus já inúmeros subgéneros, sintoma da vitalidade do
movimento, EX é e será sempre homenageado como o rastilho que nos libertou da "estagnação poética dos significados” (palavras suas).
Mantendo-se
fiel à forma (o Pentátrio - estrofes com 5, 4, 3, 2 e 1 versos) que inventaria para
dar a conhecer o seu universo, os Poemas-para-sentir, dedicou-se, nesta sua
última década de produção, exclusivamente a escrever, a experimentar o
abstracionismo como destino aglomerador de toda a sua criatividade.
Nesta coletânea, “Pentir”, encontram-se os 15 poemas mais emblemáticos dos seus últimos dois anos de atividade, o último e único período, da sua carreira, que faltava documentar. Parabéns ao Rui Teresa pela iniciativa.
Dois
natais antes da sua morte, EX enviou-nos uma curta, mas significativa mensagem, onde assume o lado emotivo e até algo ingénuo com que sempre alimentou os seus argumentos e que, com todo o prazer, partilhamos convosco:
“Resistir ao terrorismo do sentido único é ser nómada permanente, mas sem perceber onde e porque se viaja. É dar valor a tudo, é não ter preferências e de tudo gostar. Obrigado, meus amigos, por terem acreditado desde o início. É muito bom ser nómada convosco.”
Concluímos
esta breve introdução com uma citação da prestigiada Time Art Today (que o entrevistou várias vezes), aquando do primeiro aniversário da sua morte:
“Há um
ano deixou-nos Edgar Xisto, o abstracionista português, considerado, pelos
principais comentadores culturais da atualidade, o promotor de um dos primeiros grandes debates no pensamento estético-literário do século XXI. A originalidade do seu contributo, que transforma o
sentido-fixo num leque fluido e descontrolado de possibilidades, tende a esvaziar e animalizar
o leitor, ignorando, de forma magistral, qualquer noção de eficácia.”
Os
editores
“Pentátrios
primordiais”
Edgar Xisto (Portugal, 1968-2020)
Éramos ainda muito jovens quando, pela
primeira vez, nos cruzámos. Edgar era autor de fenómenos e eu caçadora dos
mesmos. Nesse puzzle de criação e fundamentação nos complementámos e
sedimentámos uma amizade que durou até ao fim dos seus dias.
Entre tantos escritores da época, ele salientava-se por entender a incompreensão do real como um cenário fértil, resistindo à
solução de usar a imaginação para explicar o incompreensível. Assumindo essa
incapacidade de assimilar o todo, Edgar Xisto foge à tentação de procurar
respostas, celebrando a ignorância intelectual como um passaporte à exploração
dos sentidos e do sentir, glorificando a imperfeição do ser humano na reinvenção de um tempo mitológico e sensorial, paradoxalmente anterior à invenção da palavra.
Posicionando-nos na cronologia literária universal,
o universo concetual destes Pentátrios, que Edgar nos oferece,
tem raízes numa pequena franja do modernismo europeu do início do séc XX, uma
certa poesia vanguardista e experimental defensora de uma relação cada vez mais
consciente e simbiótica entre o Homem concreto e material e o texto abstrato e libertador.
Na conceção destes
“Poemas-para-sentir” (como o próprio autor os designou) está definido o
objetivo que empurra o poema para o campo da abstração, que exacerba o lado do
sentir nisso de ler e que em tudo se assemelha à relação que estabelecemos com
um quadro abstrato, onde a sensação se sobrepõe à figuração.
Ler não no sentido de descodificar,
ler não no sentido de refletir, mas ler no sentido único de sentir,
consolidando a explosão de todos os fatores relativos. A escrita como motor do
indizível, a sintaxe como motor do indecifrável, a palavra como motor de
sensualidade improvável.
Como quem escolhe tonalidades, Edgar Xisto pinta paisagens lexicais em verso. Convida-nos a esquecer o sentido das palavras com que sempre nos confortámos. Convida-nos a reviver o ground-zero da nossa própria memória
sentindo o texto
no sentir que
(ainda) nos é.
Khalidah Janan
uma amiga
Time Art Today - É
claro que uma conversa com Edgar Xisto implica imediatamente falar de
abstração. Sabemos que no seu percurso artístico nunca tinha manifestado esta
preocupação pela abstração, ou pelo menos de forma tão assumida. Porquê esta
viragem?
Edgar Xisto - Sim,
podemos dizer que durante muito tempo me preocupei com a completa reformulação
formal e temática. Sempre entendi o que fazia como momentos únicos,
irrepetíveis, sem qualquer enquadramento no restante. Porém, com uma dessas
experiências tive uma relação diferente, mais reveladora, que me seduziu
completamente.
TAT - Abstrata?
EX - Sim, mas abstrata
como ponto de partida, sem nenhuma vinculação ao abstracionismo interpretativo.
Ou seja, ainda que o processo criativo seja abstrato, abre duas portas de
acesso: numa, nada impede o leitor de estabelecer relações de sentido na
leitura que faz; noutra, o leitor pode deixar-se guiar pela relação de som,
grafismo e sequência que o poema proporciona, sem lhe atribuir nenhum
significado consciente.
(...)
TAT - Aquando do
lançamento de “Como eu gosto de nuvens, 3 poemas para sentir”, deu uma
emblemática entrevista onde explicou os fundamentos da sua teoria sobre os
Poemas-para-sentir, dando origem, de forma quase imediata, a um movimento
literário que hoje é conhecido por Abstracionismo 21. Que repercussão teve tudo
isto na sua obra?
EX - Refreou a minha
produção literária. Deixei de ter todo o tempo só para criar, tive de dividi-lo
com todos os convites que me foram chegando, de todas as partes do mundo. Toda
a gente tinha curiosidade em saber mais sobre os Poemas-para-sentir, o que eu
atribuo a esta necessidade, cada vez mais consciente, que as pessoas têm em
equilibrar o racional com o irracional, o explicável com o indizível, o
assertivo com a indecisão.
(...)
TAT - Num depoimento
seu anterior, apontou a falta de criatividade como a principal razão para
fruirmos uma obra e imediatamente identificarmos o seu autor. Justificava assim
a constante mudança de paradigma de obra para obra. Neste momento, contudo, a
sua produção alinha sempre pela mesma referência formal e temática. Como
integra isto na sua afirmação?
EX - Nessa fase, antes
de me ter cruzado com a abstração, vivia a criação de forma experimentalista,
interessava-me muito viver coisas sempre novas, viciei-me nessa adrenalina.
Quando inventei os Pentátrios mudei de paradigma. Troquei o absolutismo da
criatividade por um certo tipo de conservadorismo formal, troquei o ímpeto pelo
argumento. Sim, de momento, a minha obra padece de falta de criatividade, assumo-o.
Deixou de me importar, faço por fazer, repito até à exaustão, até ao bocejo.
(...)
TAT - E como é ser um
poeta abstrato em Portugal?
EX - Não poderei
responder enquanto representante de uma categoria, porque não me sinto mandatado pelos muitos abstracionistas portugueses que conheço. Quanto a mim,
logo desde o “Como eu gosto de nuvens” encontrei uma editora com a qual ainda
trabalho. Por parte da crítica nacional houve alguma incompreensão inicial,
algum receio de substituição, os eternos fantasmas dos pensadores normativos.
Quando os ecos do estrangeiro começaram a chegar de forma incontornável, o país
apercebeu-se do fenómeno e aceitou-o bem. Os críticos acabaram por perceber que
afinal há espaço para todos. Se, nos primeiros tempos, os Poemas-para-sentir
eram apreciados apenas por um público insatisfeito com o panorama literário
vigente, hoje dilui-se por todos os consumidores de literatura.
(...)
TAT - “FEELINGS &
WORDS - Edgar Xisto and the Abstractionism 21” é o título da primeira exposição
mundial de poesia abstrata, a inaugurar em Nova Iorque dentro de dias. Logo
pelo nome percebemos a importância reconhecida do seu trabalho. Vai estar
presente?
EX - Sim, aceitei o
convite do museu para ser o visitante número 1 do evento. Vão ser dois meses
repletos de momentos interessantes. Lá encontrará trabalhos meus juntamente com
os trabalhos de todos aqueles que, mundialmente, acrescentaram muito valor à
poesia abstrata. Há os que aparecem em quadros (como os meus), nas paredes, mas
também há projeções holográficas, poemas em tapetes, fotografias de graffitis
com poemas abstratos por esse mundo fora, declamações, vídeos, os tetos também
foram pintados com palavras soltas, aleatórias. Ainda que me reconheçam como
ponto de partida, a dimensão de toda a exposição permite perceber que o
Abstracionismo 21 vai muito além de mim, por campos impensáveis, de uma
criatividade irreprovável. O que me satisfaz, claro.
TAT – Sendo, então, óbvio que ficará uma marca sua na evolução do pensamento literário, de que forma gostaria que o efeito EX se fizesse verdadeiramente sentir no público que o lê?
EX – O que eu gostaria mesmo era que cada leitor conseguisse, através da literatura, tirar férias de si próprio, apesar de não ter a certeza de o meu contributo ir nesse sentido, ou de ter força suficiente para tal. Vejamos, o fim de semana, as férias, aquele copo ao fim do dia, ou mesmo o ato de dormir, são essenciais para equilibrar a vida. Somos confrontados, socialmente, com a necessidade (válida, não digo que não) de nos afirmarmos, de termos a noção do que somos e do que representamos. Este exercício constante precisa de equilíbrio, isto de estarmos constantemente cheios de nós próprios só é legitimado se houver contraditório. Transpondo para a literatura, não devíamos procurar só os autores consagrados, as edições especiais, os temas habituais. Essa ideia de que como só tenho uma vida devo escolher bem os livros que leio é falsa. É justamente porque só tenho uma vida que não devo perder a oportunidade de experimentar, de fugir ao aplauso previsível, de enfrentar a angústia da indefinição. A literatura não tem de ser só lida, pode ser vivida.
término
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