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Vale Macio

 


Vale Macio

Pacífico Maria Figoldes

 

A minha vida.

Pois, a minha vida.

Já publiquei oceanos de tinta em folhas de papel ou da outra tinta, menos aromática, em páginas virtuais e desmatei temas cujos núcleos abrangem quase tudo o que vai acontecendo neste mundo. Com as sucessivas investigações que realizei, não só no âmbito profissional, como por satisfação desta minha doentia curiosidade, é-me reconhecida a capacidade de enriquecer os meus textos com a transversalidade que os melhores argumentos exigem.

Tenho a noção do público que ao longo destas quase 4 décadas de investigações tem interagido comigo e acredito que agora já consigo selecionar as linhas de pensamento que uma peça jornalística deve seguir, fazendo a adequada seleção dos ingredientes que, não retirando o valor nobre e científico da procura das verdades circundantes, consigam espicaçar o leitor, alimentando o seu entusiasmo nesta saga eterna de descobrir mundos novos nos mundos velhos.

Porém nunca tinha falado de mim, revelando-me apenas nalguns apartes que nunca me esquivei de soltar, sempre que a exigência do momento me pareceu oportuna para sublinhar o facto de que os textos assinados por mim são, essencialmente, descrições da realidade, mas, como já referi, assinados por mim, carregando nisso qualquer coisa de subjetivo, que pode ir do meramente angular ao incontestavelmente parcial.

As circunstâncias atuais, contudo, determinam que o faça: os meus patrocinadores sublinham a necessidade, os meus colegas subscrevem a intenção e os meus leitores já celebram o projeto. Não posso esquivar-me. É desta.

Por decisão estrutural não vou cair na diarística, não vou dar ao tempo o tempo que já gastei. Limito-me a socorrer das memórias as especiarias que nos conduzirão aos sabores do presente, à reveladora e inquietante viagem a Vale Macio.

Começo pela infância, lembrando-me da casa onde vivíamos, eu, o meu irmão e um primo órfão. Lá dormíamos juntos num amplo quarto que ocupava todo o primeiro andar da casa, sendo que os meus pais ocupavam um dos dois quartos do piso térreo. Apesar de serem espaçosas, as divisões encontravam-se a abarrotar de objetos, em parte por causa da minha mãe que tinha dificuldade em deitar coisas fora, em parte por causa do meu pai que colecionava (acumulava) tudo.

A nossa casa, em forma de quinta pequena, ficava nas imediações de Beja.

 

A nossa quintinha, a última porta do Caminho dos Campanários, era conhecida na vizinhança pelo amontoado de tralha que sufocava a fachada. O meu pai tinha o jardim das traseiras sempre impecável e bem desenhado, o que contrastava grandemente com a frente, onde caixas e outras coisas empilhadas davam um indesejado ar de desleixo.

Desde a reforma que muito ele trabalhava no seu canteiro de estranha geometria, acentuando cantos com flores de cor garrida, contrastando curvas com pedras de múltiplas tonalidades, aromatizando passagens com intensidades graduais, atraindo aves de chilreios combináveis. Esta sua obsessão que, no início, nos parecia apenas uma forma de ocupar tempo livre, foi-se revelando uma atividade a tempo inteiro, sendo que, no período final da sua vida, obrigava-o a negligenciar tudo à sua volta.

Toda a vida ele foi um pouco enigmático, mas nesta fase o meu pai já só comunicava por palavras-código no que, musicalmente, pareciam versos sabe-deus-de-onde, sendo que nos últimos dias – como se se apercebesse da aproximação do fim – apenas queria falar comigo e levava-me a passear infinitamente por todo o percurso do jardim que cultivou, enquanto me repetia os mesmos versos vezes sem conta, insistindo que os cantasse com ele. O percurso era sempre o mesmo e os versos também.

Nos seus últimos meses de vida a família foi-lhe ficando indiferente, porém, sempre que eu aparecia, o seu nervosismo entusiasmante era notório. Todo ele sorria e o seu olhar não me largava um segundo. Depois aproximava-se de mim e, quando não me conduzia ao jardim, dizia-me os tais versos, declamados por vezes de forma misteriosa, algo sinistra até, dada a expressão com que os seus olhos e rosto os acompanhavam.

Tudo isto acabava por provocar grande sofrimento à família, pela decadência da sua já paliativa obsessão mental.

Certo dia, pegou na sua bengala e pediu-me que o levasse ao jardim. Apesar de chegarmos a ir, sempre só os dois, 3 a 4 vezes ao jardim por dia, nos dias anteriores, curiosamente, nem falou no assunto. Preocupou-me vê-lo mais abandonado, sem aquela emoção do jardim. Disse-me, nesse dia, que íamos fazer uma coisa diferente.

 

Quando chegámos ao início do percurso habitual ele sentou-se num banco perto e explicou-me que naquele dia quem tinha de fazer tudo era eu. Que só tinha de fazer o percurso certo e dizer os versos que já saberia de cor. Executei a tarefa com tanta facilidade que tive de lhe reconhecer alguma validade no método.

A morte do meu pai, poucos meses depois deste seu declínio comportamental, iniciou um breve capítulo de intermédio nas nossas vidas. A minha mãe, incapaz de suportar a solidão, apesar da proximidade dos filhos, ensandeceu ao ponto de nos ser recomendado o seu internamento irreversível.

Eu e os meus irmãos (assim tratamos o primo que sempre viveu connosco) acabámos por vender a quinta. Não conseguíamos continuar a viver num local que trazia constantemente às nossas memórias a incongruência enigmática daquele absurdo doloroso. Com o dinheiro da venda comprámos um prédio em Arganil, onde vive grande parte da nossa família e onde agora também me encontro.

Na mesma altura desta transição de cenários fui convidado a ocupar um lugar de jornalista de investigação neste que é, ainda hoje, um dos nossos mais importantes órgãos de comunicação social. A hipótese de viajar pelo mundo, aprofundando temas de variadíssima ordem, pareceu-me a melhor forma de virar a página à minha vida pacata, possibilitando-me a derradeira distração da, então recente e traumatizante, tragédia familiar.

Durante os primeiros anos, fui-me sempre disponibilizando para todos os trabalhos que implicassem as rotas mais longínquas com as temáticas mais complexas. Ainda que tivesse como objetivo assegurar-me o afastamento do cenário familiar, o paralelo sucesso dos meus trabalhos foi-me garantindo uma posição de destaque no mundo da imprensa. Hoje dirijo uma secção dedicada, única e exclusivamente, ao jornalismo de investigação. Foi neste contexto de valor reconhecido que fui convidado, pela Sociedade Geográfica Internacional, a acompanhar a equipa de cientistas que se deslocou a Vale Macio.

Há cerca de 15 anos, um acidente limitou-me a capacidade motora, pelo que passei a viver quase permanentemente em casa (Arganil), tendo circunscrito o meu campo de ação a trabalhos que não impliquem viajar fisicamente. No entanto, por um qualquer estímulo impulsivo e pela possibilidade de, através de fósseis únicos, dar um abanão nas genealogias evolutivas comumente aceites, aderi à expedição a Vale Macio. As minhas limitações motoras não me impedem de andar, desde que o ritmo seja muito lento e, claro, a bengala.

 

A forte possibilidade de os inexplicáveis fósseis por lá encontrados provocarem uma reformulação do conceito evolutivo Darwiniano foi a razão, racional, com que justifiquei a minha decisão, ainda que, paralelamente, também sentisse, sempre que a ideia deste convite era ativada na minha mente, uma incompreensível vontade de aceitar, como que uma excitação determinada.

Desde que o hidrocidadão Luppi Endro descobriu o primeiro canal subaquático intercontinental de ligação intraterrestre que novas ligações têm sido estabelecidas entre diversas partes do mundo. Através de uma delas conseguimos finalmente aceder a Vale Macio.

Na extraordinariamente bem documentada obra, Isolation, assinada por um dos meus colegas de trabalho sobre o fenómeno Vale Macio, são reveladas e confirmadas as curiosas circunstâncias que levaram ao isolamento daquela ilha. Durante o séc. XVII, as cordilheiras já de si bastante elevadas que rodeavam a aldeia foram assoladas por movimentações da crosta que, em cocktail com violentas e concentradas erupções vulcânicas, elevaram para uns absurdos 23km de altura média as montanhas que, neste processo, acabariam por isolar aquela comunidade.

As suas muralhas naturais, niveladas a nível estratosférico e tornando obsoletas todas as formas já praticadas de voar na troposfera, criam, ainda assim, uma outra dificuldade de reconhecimento.

Esta situação de isolamento sem paralelo cimentou, no microclima do vale, um contexto de aglomerado estático, ou seja, nuvens que o assolam permanentemente, dada a inexistência de ventos e outras influências exteriores. A humidade associada ao seu grande lago (através do qual conseguimos penetrar neste mundo isolado), estimula o seu ciclo interno de chuvas e nebulosidade.

É defendida por muitos a tese de que esta combinação única (e pouco estudada) entre a exagerada altura das suas montanhas circundantes e a já referida condição de nebulosidade extrema terá necessariamente a ver com o facto mais incompreensível de todos: a incapacidade de localizar Vale Macio pelos mais avançados instrumentos tecnológicos (radares, satélites...), transpondo a sua existência para um quase unanimemente aceitável nível mitológico, como a Atlântida.


Não fora a obstinação de alguns historiadores (que se dedicaram à compilação de toda a documentação sobre Vale Macio, anterior ao séc XVII, e que sempre afirmaram a sua veracidade bem como a do museu dos fósseis desalinhados, alegando que tantos e tão diversificados registos não podiam ter sido forjados) e a já referida passagem intraterrestre (descoberta na sequência das dinâmicas iniciadas pelos hidrocidadãos), e a nossa expedição não teria tido lugar e hoje ainda não teríamos sequer provas da sua veracidade.

E foi assim que uma equipa composta por mim e por mais cinco pessoas, num submarino de profundidade, viajou pelos interiores da Terra até emergir no lago Cru, o centro nevrálgico de Vale Macio.

O percurso foi completamente documentado. A base da descoberta da maioria das passagens subaquáticas intraterrestres é a deteção dos chamados nutrientes de superfície em correntes oriundas do fundo do mar. Se na sinalização do seu percurso estiver um túnel na sua origem, então temos passagem, pois esta virá de alguma outra superfície noutro qualquer lugar do planeta.

As coordenadas geográficas da passagem 37BL, a nossa, bem como o tipo de nutrientes de superfície que a respetiva corrente traz consigo, correspondem à melhor combinação de fatores até hoje conseguida, no que respeita a Vale Macio. Assim se decidiu avançar e lá fomos, confirmando as melhores suspeitas. Por sermos os pioneiros, o submarino estava equipado de equipamento que foi documentando cada detalhe da 37BL.

De todo o sexteto, eu sou o único preocupantemente talassofóbico, pelo que precisei de fazer alguns exercícios de preparação no sentido de não me descontrolar durante as viagens de ida e volta. A motivação do tema, porém, deu-me as forças que precisei para me conseguir controlar e não deixar que esta minha dificuldade interferisse nos trabalhos do grupo.

Como primeiro indício de estranheza, quando estávamos a chegar aos 7,5 km de profundidade, olhei para as minhas mãos e não as vi. Pensei tratar-se de um torpor nos olhos gerado pelos meus absorventes medos da água sem fim.

Quando olhei de novo, lá estavam elas. Tudo normal, portanto.

Chegámos à superfície. Confirmavam-se as teorias da existência deste vale que se escondia atrás de montanhas cujos picos nem conseguíamos focar, de tão altos. Paredes de pedra até ao infinito, assim nos rodeavam estes monstros de rocha negra. Agora precisávamos de confirmar se ainda vivia alguém por cá e descobrir o museu dos achados históricos.

 

Ainda antes de sairmos do veículo que nos transportou mar adentro, outros bloqueios de visão, assim o julgava, me foram atormentando, sendo que, numa das vezes, não me vi da cintura para baixo e, noutra ainda, deixei de me sentir acompanhado pela sombra que ia produzindo nas paredes do submergível. Como não via nenhuma reação estranha por parte dos meus parceiros de viagem, nem, em momento algum, se me ocultaram as suas presenças físicas, atribuí esta minha aparente confusão visual ao pânico que tenho pelos mares, fazendo fé de que tudo voltaria ao normal mal pisássemos terra seca.

Nos meus colegas, estes fugazes e parcelares desaparecimentos também foram ocorrendo, ainda que ninguém os tivesse denunciado, talvez pelo receio de alguma incompreensão. Só quando saímos mesmo para terra e o fator invisibilidade se tornou incontornável é que partilhámos a angústia da transparência, tentando, entre pares, encontrar conforto e, inutilmente, explicação para o que nos sucedia.

Se inicialmente apenas o nosso corpo (não a roupa nem adereços) ficava translúcido, uma vez em terra, tudo o que nos cobria também desapareceu.

Aguçámos os restantes sentidos e fomos, principalmente através do som, voltando a sentir a noção de grupo que os nossos olhos insistiam em desmentir. Assim que assumimos a nossa impotência em inverter os acontecimentos, conformámo-nos e decidimos, apesar da bizarra circunstância, manter intactos os objetivos da expedição. Avançámos.

Da margem do lago que nos recebeu não se via qualquer sinal civilizacional. Porém, como estudáramos os textos antigos, tínhamos a noção do caminho a percorrer até Vale Macio, a única localidade deste cantinho do mundo, a que, supostamente, teria conservado os estranhos fósseis que, ou resolveriam de vez as lacunas evolutivas da vida na Terra, ou destruiriam grande parte das teorias já aceites, quebrando, também de vez, muitas das certezas herdadas do pensamento de Darwin.

Após algumas dunas e momentos de mata mais densa, avistámos a localidade. Ainda que a maioria das casas de madeira lhe desse um ar aconchegante, alguma excentricidade arquitetónica, como um edifício em forma de flor, outro de pássaro, criavam irregularidades de alturas e materiais tal que deixavam um sabor de fantasia no ar.

Entrámos em Vale Macio, bastião do vale com o mesmo nome e fomo-nos adensando nas suas artérias de traçado em tudo semelhantes às de qualquer localidade do mundo exterior. Curiosamente, ia sentindo uma sensação de familiaridade ao percorrê-las no meu passo lento.

 

Observámos os seus habitantes e logo confirmámos que a nossa invisibilidade era real também aos seus olhos, pela forma inequívoca como nos ignoravam.

Não deixámos, contudo, de ter corpo, ainda que translúcido, gerando interação com o mundo físico circundante. Eu próprio, quando distraidamente observava um curioso edifício em forma de garfo (ou forquilha), esbarrei contra um macience. O choque violento que nos fez cair gerou uma preocupante e assustadora reação no meu opositor que, de repente, se viu atirado ao chão, desequilibrado com o incompreensível embate contra um obstáculo de... nada.

A engrossar a angústia sentida, este cidadão de Vale Macio ouviu o gemido doloroso que soltei quando caí sobre o meu joelho fraturado. Sentiu-me e ouviu-me, mas a sua visão, último reduto da mais fiável confirmação do mundo, fundia-lhe a intrínseca noção de si próprio com a derradeira ilusão da existência. Ficou a olhar atónito para o vazio que eu ocupava. Amedrontado levantou-se e, coçando a cabeça, voltou às arrecuas, invertendo a direção da sua marcha.

Com os meus comparsas também se foram acumulando episódios de interação confusa, o que nos obrigou a, através de específicos sinais sonoros (que treinámos para responder a situações extremas), reunir o grupo e, afastados da localidade, delinear o nosso plano de ação.

Dada a invisibilidade de todos os nossos apetrechos, tivemos de recorrer à memória para recuperar toda a informação útil. Em função do que já tínhamos conseguido observar, o museu, referido nos escritos antigos como Museu Arca PowWow, que continha no seu interior os vestígios arqueológicos que procurávamos, ficaria a meio da avenida principal e esta inesperada condição de estar invisível poderia até trazer benefícios aos nossos objetivos. Durante dois dias mantivemo-nos nos arredores de Vale Macio, até conseguirmos, nesta nova circunstância da invisibilidade, treinar estratégias eficazes de comunicação.

Quando regressámos à localidade, reparámos que algumas pessoas se encontravam paradas no meio da avenida principal a olhar para o chão. Mal nos aproximámos delas, as marcas dos nossos pés na areia que cobria os passeios foram notadas e logo o macience que as viu tirou do bolso um apito, fazendo com que todos se virassem na nossa direção. Os seus olhares não iam na direção dos nossos, mas na busca das nossas pegadas.


De forma muito bem articulada, denotando preparação, fomos rodeados pelos maciences que nos conduziram ao centro daquela avenida, onde nos aguardava um outro grupo, mas de anciãos, mais formais, com roupa cerimonial. Das janelas pessoas debruçavam-se e, aos poucos, a praça central encheu-se de gente. Sentia-se uma excitação no ar e, quando nos apercebemos, estávamos completamente rodeados.

Então soou um apito semelhante ao que nos identificou e fez-se silêncio em Vale Macio. O porta-voz do povo deu dois passos em frente e falou.

 

“Apesar de não vos ver e por não vos ver, conto-vos a razão de há muito ser esperada a vossa visita.

Fundada em história de mercadores, Vale Macio nunca sofreu de falta de espaço, acolhendo nas suas extensões todos os que aqui passavam, os nómadas que se sedentarizavam, os que procuravam destino a dar à existência e ainda os que, por acaso, descobriam neste vale, nesta ilha, o cenário ideal à sua fragmentada composição pessoal. É nessa diversa e cosmopolita matriz humana que está a essência histórica do que somos, na primeira vaga de colonização.

Nos tempos iniciais, antes do isolamento e como sinal dessa diversidade, comemorava-se por cá o fim do Ramadão, a ressurreição de Cristo, o nascimento de Ganesha, entre outras 23 datas. Nestes antigos feriados da vila, o cosmopolitismo original dos seus habitantes respeitava as particularidades dos rituais religiosos celebrados, com origem em quase todo o mundo exterior, e toda a gente comemorava todos com o mesmo fervor festivo.

Porém, um incêndio devastador no grande arquivo local, que na vila teve o peso que o de Alexandria no mundo antigo, e os vários séculos de isolamento de Vale Macio acabaram por provocar o esquecimento dos sacramentos originais, as histórias divinas foram-se perdendo e a sua fusão tornou-se num valor mais alto do que a sua distinção. Fomos evoluindo nas nossas crenças reduzindo-as aos seus essenciais comuns, personalizados em novas entidades inspiradoras, numa denominação de fé que chamámos Igreja do Mundo Interior.

Para além de alguma revolta com os deuses do mundo exterior que, nitidamente, nos teriam abandonado, todos, sem exceção, isolando-nos desta forma intransponível, como se estivéssemos a pagar por algum pecado ou, pior, fôssemos o bode expiatório de alguma maldade universal, um acontecimento anterior já tinha despertado em nós a ideia de que até podíamos iniciar esta aventura da autossuficiência.

Ainda antes do isolamento definitivo, o mundo já tinha ouvido falar de Vale Macio.

Em 1598, uma expedição geográfica encontra, numa gruta no vale, ossadas e vestígios civilizacionais que apresentam padrões completamente desprovidos de sentido, futuristas. Comitivas dos mais importantes estudiosos mundiais deslocaram-se então a Vale Macio.

Quando, já na primeira metade do séc XVII, a convulsão da Terra começou a fechar o vale, muitos desses estudiosos ficaram, para sempre, aprisionados por cá, concluindo, assim, a segunda vaga de colonização de Vale Macio, de nível académico superior, o que traria um ambiente de aprofundamento e debate, que ainda hoje é o principal sabor das nossas rotinas.

Já isolados, as investigações à caverna dos vestígios foram retomadas e, em 1812, Jolin Himano, um dos nossos historiadores, descobriu os Escritos do Volver, a base filosófica da nossa Igreja do Mundo Interior.

Em doze volumes de texto, estes Escritos referem, no volume III, um acontecimento do Período Mitológico, no qual os Dilnics, uma tribo insular, desesperada por uma sucessão de infortúnios vindos dos mares, suplicava proteção a Poseidon.

Nas suas preces pediam o isolamento do mar. Poseidon, indignado por lhe estar a ser pedido um afastamento do seu próprio reino, exige que a tribo lhe ofereça a sua memória, esquecendo-se da existência do mundo exterior. A tribo cede. Então, Poseidon eleva as margens da ilha, transformando-as em muralhas tão altas que o mundo exterior deixou de saber se eles alguma vez existiram. Sem património de memória e sem os recursos do mar, os Dilnics foram definhando até quase à extinção.

Deu-se, entretanto, o fim do Período Mitológico e o Olimpo foi substituído pelos espíritos. No sentido de apaziguar o receio humano pela mudança de paradigma divino, os Indigo (os governantes do mundo espiritual) comprometeram-se a analisar todas as intervenções divinas anteriores, que tivessem gerado algum tipo de desconforto.

É então que, um dia, cito os Escritos, "um homem sem corpo mas com voz, sem sombra mas com cheiro, conseguiu penetrar no cárcere maldito dos Dilnics. A tribo cantou-lhe os versos de Calimprez e ele passeou pela tribo na única forma de o fazer, terminando os cânticos. As muralhas cederam ao peso do tempo e o mar voltou ao horizonte da tribo."

 


Assim termina a história com a qual, excetuando os requintes narrativos da mitologia, estabelecemos um paralelo óbvio com a nossa situação de isolamento.

Apesar de estarmos convencidos da nossa capacidade de continuar a viver no isolado Vale Macio, sabemos que há um mundo lá fora e queremos ter a opção de o visitar, de o conhecer.

Desde sempre que, nos nossos rituais de manutenção energética individual, nos preparamos para esse dia, o dia em que o nosso salvador cumprirá os procedimentos, para que nós possamos voltar a existir aos olhos do mundo, cumprindo-se a profecia, quebrando-se a maldição.

Cantemos então os versos sagrados na esperança de que algum de vocês os saiba completar. O mesmo que saberá como percorrer a nossa terra, libertando-nos finalmente.”

 

Neste momento já me era óbvio o que se esperava de mim. Que fosse eu, uma vez que era o único a deter o conhecimento de versos e percurso profetizados, o protagonista do fim do esquecimento. Que, partindo de mim, o mundo pudesse, de novo, acarinhar os maciences.

Assim o fiz, aos cânticos entoados acrescentei as palavras em falta que o meu pai me ensinara, tendo depois percorrido, mecanicamente, o traçado urbano de Vale Macio, como se estivesse no jardim da minha infância.

Quando cheguei ao fim, que neste espírito circular queria dizer ao início, o chão tremeu. Raios e trovões assolaram o céu, dando origem, na bonança que se apregoa, a um dia lindo, onde o sol, pela primeira vez em alguns séculos, aqueceu, sem filtros, o chão daquele local ignorado, retirando-nos, de forma quase imediata, a invisibilidade.

O resto já vocês sabem. As muralhas foram cedendo, Vale Macio foi detetado pelos mecanismos oficiais, os mapas foram reescritos e os maciences voltaram a misturar-se com o mundo. Houve alguns percalços e, aqui e ali, alguns episódios de incompreensão, mas, aos poucos, o direito à peculiaridade venceu o manto do homogéneo e, quanto ao turismo do saber e aos turistas do lazer, hoje Vale Macio é um dos locais mais requisitados.

Da pacificação que já ocorre no entendimento que, dia após dia, vamos consolidando deste fenómeno, há uma névoa que ainda persiste comigo (e sobre mim) e que se resume a duas perguntas simples:

Quem era, afinal, o meu pai?

Porquê eu?

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