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Ativismo cósmico


Ativismo cósmico

Ana do Rosário

 

 

Nos últimos dias de agosto fui informada da minha colocação e, pelo telefone, comuniquei a minha disponibilidade para aceitar. Senti uma emoção algo exagerada do outro lado da linha quando afirmei que sim, que, apesar de não conseguir apresentar-me ao serviço por questões de saúde logo no dia 1, no dia 5 estaria de armas e bagagens para viver mais uma aventura pedagógica. Só quem anda nestas lides é que percebe na sua plenitude a que me refiro com a palavra “aventura”. Só quem, como eu, vagabundeia involuntariamente de escola em escola é que conhece a coleção de inesperados e incompreensíveis que caraterizam um novo ano numa nova comunidade escolar.

A uns bons 500 metros da última habitação da localidade, o edifício da escola ficava num promontório rodeado de árvores altas e escuras. De longe não suscitava grande entusiasmo, antes pelo contrário, a primeira imagem, a primeira impressão, aquela que (apesar de reconhecermos a sua irrelevância e inutilidade) nos introduz no que quer que seja, deixava-me inquieta.

A imponente entrada de grandes portões, com porteiro ancião, fez-me sentir diminuída, pequenina, reforçando o formigueiro mental com que aquele cenário me alimentava.

- Sou a professora de Português.

- A professora que só podia começar no dia 5?

- Exatamente.

Após o que me pareceu um olhar demasiado intenso, o senhor (que sei agora que se chama António) ligou para não-sei-onde e informou da minha chegada. Sem grandes sorrisos, pediu-me para entrar, mas para estacionar logo ali, que viria alguém da direção receber-me.

Um local diferente, sem dúvida, pensei de imediato.

Não posso fazer disto uma regra geral, apesar de ser geral na totalidade da minha experiência, mas ninguém nunca nos recebe numa escola. Passada a portaria, vamos algures receber o horário, que nos é entregue por alguém destacado para o serviço, e pronto. Nem explicações, nem boas-vindas, nem nada que pareça que somos pessoas. Parte-se sempre do princípio que cada professor que calha numa escola é bom em tudo, que sabe o significado operacional de todas as siglas e que tem perfil para todos os cargos.

Desta vez não, ia ser recebida por alguém da direção... que pomposo... e inquietante.

 

 

Apesar de saber que a gestão, os serviços administrativos, os funcionários e os colegas docentes determinam muito da qualidade de um ano letivo, nada supera a importância dos alunos. Não há sentimento pior para um professor do que aquela desmotivação perante o cumprimento de um horário, se isso implicar trabalhar com alunos com determinados perfis.

Com bastante (e visível) cautela, os elementos da direção da escola reuniram-se comigo para me explicar o serviço que me tinha sido atribuído.

Quando um professor olha para o horário, a primeira coisa em que repara é na mancha. O horário de um professor é composto por uma parte significativa de 10 horas semanais, que é a parte não presencial, destinada, essencialmente, à preparação de aulas e correção de trabalhos. Muitas escolas recusam-se a dar importância a isso, como se, para um desportista, fossem absolutamente indiferentes as condições em que treina. Quero com isto dizer que cada professor devia ter, obrigatoriamente, um dia por semana sem ir à escola, de forma a, sem dispersões (e sem recorrer a abusos, como trabalhar pela noite dentro ou ao fim de semana), preparar os 4 dias restantes. Em muitos casos, essas 10 horas estão espalhadas pelos 5 dias úteis, como se horas soltas tivessem o mesmo efeito na qualidade do trabalho, enfim... a escola no seu pior.

De forma absolutamente espantosa, desta vez a mancha do meu horário encontrava-se completamente arrumadinha em turnos seguidos sem furos no meio e com um dia inteiro sem marcações.

Notando a minha satisfação, a diretora do estabelecimento desviou-me a atenção para o serviço que me fora distribuído, nomeadamente, para uma turma em particular, ao mesmo tempo que pedia aos restantes membros da direção para irem tomar um café, que precisava de me dar uma palavrinha em privado.

Foi, então, ao meu currículo e enfatizou o facto de eu manter, em paralelo com a atividade docente, uma participação ativa no Centro de Estudos Paranormais. Que até tinha sido essa a fundamentação da decisão de me escolher para este cargo, que implicava trabalhar com uma turma com 16 alunos inscritos na documentação oficial, mas que, na verdade, eram 17. Porém, razões que, na altura oportuna, me seriam explicadas, impediam-na de me adiantar qualquer outra informação.

Se há sempre qualquer coisa de diferente em todas as escolas por onde tenho passado, esta parecia candidatar-se ao título da mais original, por tudo.

 

 

Na sexta-feira à tarde fui para casa ver a família.

Terminou a primeira semana de aulas, que foi curta, pois o dia 5, quarta-feira, foi o meu dia não-presencial, a modos que só estive na escola na quinta e na sexta.

Durante estes dias conheci colegas, funcionários e os alunos de todas as turmas que me calharam. O impacto inicial de estranheza foi-se esbatendo com o passar dos dias, afinal a escola não é assim tão teatralmente austera como me parecera.

Não é propriamente o paraíso dos sorrisos, mas também não é socialmente medonha. Conversei com alguns colegas, simpáticos, duas funcionárias ajudaram-me a encontrar casa e o senhor António da portaria até me guiou ao local onde ficaria hospedada.

Os alunos não são, nem brilhantes, nem demasiado difíceis, pelo que, passada a primeira semana de trabalho, fiquei com a sensação de que o ano poderia vir a correr bem.

Com a turma para a qual tinha sido alertada quanto ao número impreciso de alunos, afinal não tinha nada nem ninguém assim tão fora do comum. Tendo em conta que, dada a minha experiência de trabalho com adolescentes, fora do comum é haver alunos demasiado iguais uns aos outros, as suas peculiaridades não me levaram à confirmação de nenhum tipo de bizarria. Até posso dizer que, logo nos primeiros momentos de observação discreta, consegui identificar os candidatos aos títulos habituais de líder, de aplicadinho, de desafiador, de irreverente, de introvertido, de maria-vai-com-as-outras, enfim, os papéis habitualmente desempenhados no microcosmos que é uma sala de aula.

Durante esta primeira semana, por razões informáticas, o colega encarregue de enviar informações das turmas aos professores não o pôde fazer, pelo que não tive acesso à lista com o nome dos alunos de cada turma.

Na sexta, depois da aula prevista com a turma especial, cruzei-me com a Dra Júlia, a diretora, e comentei que, afinal, não havia nenhum aluno extra na sala, pois sempre contara 16 e não 17.

- Ainda bem, eu sabia que você era uma excelente aposta para este cargo.

- Como? Não percebi o seu comentário.

- Um dos alunos oficiais faltou durante esta primeira semana. Se você contou 16 é porque conseguiu reconhecer o aluno do qual, pelo menos por enquanto, ainda não lhe posso adiantar mais informações.

 

 

Não sabendo ainda qual é o aluno especial daquela turma, durante todo o fim de semana passei em revista, na minha memória, cada um deles. Não sou viciada na minha profissão e consigo, com alguma facilidade, decidir, independentemente do volume de trabalho, não deixar que a minha personalidade laboral influencie as restantes. Todas precisam de espaço e é com todas que me vejo sempre, pelo que tê-las a digladiarem-se por mim não é espetáculo que me apeteça repetir – já me aconteceu e não gostei nada.

Contudo, as circunstâncias out-of-the-box impediram-me de desligar e não consegui deixar de pensar no assunto. Que aluno seria alvo desta atenção tão especial e porque razão a minha atividade no paranormal teria sido argumento para a minha contratação?

É costume, nas escolas, pedir aos alunos para preencher uma ficha introdutória de recolha de informações personalizadas, documento cuja finalidade me custa a entender, já que o festival das reuniões iniciais costuma servir esse mesmo propósito. Faço-o, portanto, de forma mecânica e depois enfio as fichas todas no cacifo e nunca mais lhes toco. Tempos perdidos. Desta vez, no entanto, trouxe as fichas individuais daquela turma em particular e folheei cada uma na esperança de encontrar algo fora do comum, mas nada.

Decidi então reler os trabalhos escritos que os alunos produziram, que me servem como diagnóstico, e consegui dividir entre os relatos de absoluta previsibilidade e 3 que salientavam detalhes menos imediatos. Hierarquizei estes 3 por níveis de extravagância e destaquei um onde o tema e as opções de escrita, de facto, não pareciam de um adolescente comum.

Relatava sumariamente viagens a 5 parques naturais africanos, na Namíbia, em Moçambique, na Tanzânia, no Botswana e no Uganda e depois avançava com um chorrilho de argumentos contra a, cito, “estagnação da vida”, supostamente promovida por esses mesmos parques.

A sequência dos parágrafos denotava inteligência acima da média e a defesa da tese apresentada deixou-me agradavelmente surpreendida com esta interpretação da ação dos parques naturais. Como professora, fico sempre feliz quando os alunos com quem trabalho conseguem justificar ideias de forma tão eficaz, mesmo que, como é o caso, não consiga posicionar-me com muita convicção, por serem áreas sobre as quais nunca refleti.

 

 

Quando, no domingo à noite, de saco feito, entrei no carro e me preparava para arrancar de regresso ao local de trabalho, não o consegui ligar. Senti, então, um ar demasiado frio acompanhado de um aroma adocicado.

Saí do carro e a diferença de temperatura, que ainda cheirava a verão, deixou-me perplexa pelo contraste. Uma vez cá fora, fiquei a olhar para a viatura a tentar compreender o sucedido. Acabei por voltar para casa e decidi, no dia seguinte, acordar cedo (que eu abomino) e fazer-me à estrada, já que naquele dia havia, decididamente, qualquer coisa de estranho com o veículo. No dia seguinte entrei a medo, mas nem frio, nem fragrância, tudo normal.

Tenho amigos que trabalham num GIP, com os quais me reúno regularmente por causa do meu trabalho no Centro de Estudos Paranormais. Liguei-lhes logo na segunda à tarde e contei-lhes do sucedido. Marcámos reunião para o fim de semana seguinte, quando voltar a casa.

Durante a viagem de regresso aconteceu outro inesperado. Já na reta final, quando olhava pelo retrovisor, a parte superior do banco de trás do carro escureceu de repente. Quando, segundos depois, olhei diretamente para o banco, já não vi nada de anormal na luminosidade, porém, voltei a sentir o mesmo aroma adocicado do dia anterior.

Estacionei à porta da casa que alugara e abri o porta-bagagens para retirar a mala da semana. Não estava lá. Olhei, rapidamente, para o banco de trás, na esperança de que, inadvertidamente, a tivesse arrumado lá, mas nada. Bolas! Deixei tudo em casa… e agora!?

Fiquei desesperada, não por me ter esquecido de algum objeto particular, mas por tudo, a roupa da semana, alguns materiais para as aulas, o dossier das fichas individuais, comida, um candeeiro e utensílios para a casa. De tudo o que mais me preocupou foram as roupas, principalmente lingerie, que teria mesmo de comprar.

Fiquei tão aborrecida com o esquecimento que nem entrei em casa e fui diretamente para a escola.

 

 

A minha segunda-feira é tranquila, tenho dois blocos de aulas de manhã e depois já só volto no dia seguinte, a modos que almocei na escola e regressei à casa alugada para descansar um pouco, lembrando-me imediatamente da mala esquecida e do transtorno que me iria causar.

Entrei na casa, cuja porta range, e fui de imediato ao quarto. Até gritei de susto e perplexidade – a mala encontrava-se em cima da cama. Tendo a perfeita noção de que nem sequer tinha entrado em casa, fiquei assustada e, irracionalmente, percorri todos os cantinhos da casa em busca de qualquer coisa que justificasse esta impossibilidade física.

Enquanto fazia a busca pelo impossível, o aroma adocicado que sentira no carro voltou, mas, desta vez, com uma intensidade ainda maior. Ouvi então, num sussurro, numa tonalidade quase-brisa, a palavra “professora”. Alguém me chamava, mas quem e de onde?

A minha experiência no paranormal não tem tanto a ver com querer acreditar, mas pelo facto de ter presenciado situações que fogem às regras identificadas, experimentadas e universalmente testadas, do mundo natural. Sou extremamente racional, pelo que a convicção e o testemunho alheio não me convencem. Quando alguém partilha comigo uma experiência sobrenatural, a minha primeira interpretação empurra-me para a possibilidade de a pessoa se ter confundido e esta postura aplico-a também a mim.

Quando ouvi “Professora” pela primeira vez, pensei imediatamente tratar-se de som provocado pelo vento, porém, a segunda e mais distinta confirmou a palavra.

- Sim? Quem é? – perguntei ao vazio.

De repente uma sombra começou a vaguear pelas paredes em movimento lento e arrastado, permitindo-me compreender uma forma humana.

- Quem és? Como sabes que sou professora?

A sombra aproximou-se da minha cama e cobriu a mala por completo. O fecho abriu-se, ali mesmo à minha frente, e o dossier das fichas individuais voou lentamente para fora da mala. Pousou em cima da cama, aberto na folha do aluno que escrevera o texto dos parques naturais.

“Daniel.”

 

 

Na terça comecei o dia letivo com a turma do Daniel. Fingi que não se tinha passado nada e tentei ser o mais discreta e natural possível.

No dia anterior fora-me finalmente entregue a lista com o nome dos alunos de cada turma e pude, então, fazer a chamada.

Logo na própria lista algo não estava bem, pois os alunos estavam ordenados alfabeticamente, porém, só depois do 16, a Vânia, é que aparecia o Daniel.

Fui-os chamando todos, um por um e, quando cheguei ao Daniel, o próprio levantou o braço em silêncio, enquanto os colegas olharam uns para os outros e fizeram uma expressão de espanto expansivo e riso disfarçado.

Para a aula tinha programado vermos um excerto de uma longa-metragem seguido de debate, porém, perante a insistência e o entusiasmo dos alunos, acabei por ceder e ocupámos toda a aula a ver o resto do filme. Na necessidade de reformular o plano da aula, acabei por incumbir os alunos da tarefa de trazerem os pontos essenciais do filme, resumidos numa lista, que serviria como base de memória para o debate a realizar na aula seguinte.

Aqui e ali observava o Daniel, sentado lá atrás, atento à projeção, mas sem interagir com a turma, comportamento até desejado numa sessão de visionamento.

No fim da aula saíram todos, mas o Daniel não. Manteve-se imóvel a olhar para mim. 

- Daniel, já podes sair. – disse-lhe eu, tentando ser o mais natural possível.

O seu corpo, até àquele momento visível, foi-se gaseificando até à completa transparência. A sombra, não pude deixar de reparar, não desapareceu.
Foi, justamente, através dela que percebi que se levantara e se dirigia a mim.

Ouvi então a sua voz.

- A professora consegue ver-me?

- Agora não, mas há pouco sim. O que se passa?

- Ninguém me consegue ver a não ser a senhora.

- Mas os teus colegas…

- Nem sonham que existo, por isso ficam sempre aparvalhados quando a professora fala comigo.

- Mas mais ninguém te vê?

- Só a diretora da escola, porque o meu pai lhe emprestou essa competência.

- Quer dizer que o teu pai fez o mesmo comigo?

- Não, o meu pai diz que a senhora já está treinada para observar o irreal.

 

 

A revelações do Daniel, antes de desaparecer da sala, literalmente desaparecer, pois só a sombra me confirmou o movimento de saída, deixaram-me curiosa e apreensiva.

O pai? Há um pai nesta equação? E conhece-me? Na próxima aula tenho de lhe pedir mais informações.

O Daniel faltou o resto da semana, pelo que, quando, na sexta-feira, regressei a casa, encontrei-me com os meus amigos do GIP (Grupo de Intervenção Paranormal), com os quais a minha associação tem estreitas relações, tendo-lhes contado detalhadamente esta minha experiência.

Depois de despistarmos várias hipóteses, a sombra sem corpo e o cheiro adocicado levou-os a pensar tratar-se de uma presença elohin.

Os elohins são uma comunidade galática imaterial cuja história aqui resumo.

Em tempos o reino do Olimpo vagabundeava pelo espaço até que, numa tentativa de combater a dispersão, decidiram fixar-se na nossa galáxia, fazendo da Terra a base das suas atividades. Antes, porém, para evitar que o cosmos ficasse à mercê do oportunismo, Odin, o titã de vidro, convidou os elohins a exercer essa função de vigilância. Sendo uma comunidade imaterial, os elohins espalharam-se por todo o lado, derramando a sua presença simultânea pelos mais recônditos cantos do universo, incluindo a Terra.

Até ao séc XIII os elohins eram vistos como observadores incómodos, pouco tolerantes às peculiaridades universais, até que uma nova geração de novos-elohins (ex-humanos) desenvolveu uma nova abordagem, mais compreensiva e menos controladora. Desde então que as suas ações deixaram de ter uma abrangência total, passando as suas intervenções a ser mais localizadas e personalizadas. Tornaram-se ativistas.

Como os meus amigos do GIP usavam canais de comunicação espacial, conseguiram enviar um sinal aos elohins, identificando-me como protagonista.

Poucos segundos após, sentiu-se na sala uma brisa (muito) fria e ouviu-se um sinal de notificação num computador.

A mensagem recebida confirmava a intervenção elohínica no meu caso e informava que em breve seria contactada diretamente, uma vez que, ao identificar o Daniel, tinha passado no primeiro teste, o teste do reconhecimento.

 

 

Nessa noite, quando me ia deitar, não uma, mas várias sombras percorriam, em passo lento, as paredes do meu quarto. Sem saber muito bem o que fazer, apaguei a luz e esperei desenvolvimentos. Em situações de desconcerto semelhante, costumo ficar ansiosa e inquieta. Desta vez encontrava-me calma, apesar de já sentir o frio do costume e o cheiro a doces.

À minha frente materializou-se o Daniel e, pouco tempo depois, uma figura humana, mas de dimensões consideráveis, o pai, assim o pensei.

- Olá, professora.

- Olá, Daniel.

Após esta brevíssima troca de cumprimentos, a sombra maior, atrás do Daniel, cobriu-o e, à frente dos meus olhos, o Daniel cresceu e metamorfoseou-se numa figura adulta, enorme, com cabeça, mas sem rosto.

- És o pai do Daniel?

- Digamos que também posso ser.

- Então, mas… és ou não és?

- Nós não somos humanos, a imagem que vês em mim é a tradução, chamemos-lhe isso, do nosso conceito de entidade para o vosso, que é mortal e delimitado no espaço. Eu sou o Daniel e o pai do Daniel e qualquer outro que seja necessário.

- Então quando o Daniel me falou do pai estava a referir-se a si próprio?

- Não, estava a referir-se à parte dele que, em linguagem humana, seria o equivalente a um pai.

- Em que sentido?

- Repara: a melhor forma de eu te observar e interagir contigo seria através de um adolescente, aluno, em situação formal de sala de aula. Por isso materializei-me no Daniel. Ora, sendo um adolescente, não poderia tomar decisões demasiado vinculativas. Porém, é necessário tomá-las, pelo que a figura do pai teria de surgir, nem que fosse como cenário à credibilidade do Daniel.

- Ok, deixa ver se percebi: é assim como o Fernando Pessoa que, não querendo assumir-se demasiado complexo e harmonicamente incoerente, prefere personificar cada uma das suas facetas, personalizando-as?

- Sim, é quase isso. O que interessa é que te considero a pessoa certa para levar a bandeira da causa que me traz ao vosso planeta.

- Já sei, vais-me dizer que o ser humano destrói a natureza, que está a dar cabo do planeta, que não consegue viver em paz com o seu semelhante e tretas do género?

- Não, mas é justamente por pensares assim que te escolhi.

 

 

Na minha mesinha de cabeceira, no dia seguinte, estava um dossier com documentação sobre a evolução da vida animal não humana.

Como tinha coisas combinadas com amigos, li apenas o texto introdutório, antes de sair de casa. Este dividia-se em duas partes, críticas e louvores, sempre suportados pela tese de que se devia evitar a todo o custo a extinção das espécies, mas também a sua estagnação evolutiva.

Nas críticas, resumidamente, estavam enumerados alguns parques naturais, como exemplo de cenários estagnados, onde os animais eram obrigados a viver nas mesmas condições de sempre, impedindo a reformulação de prioridades de funcionar como um verdadeiro motor de progresso biológico. Além disso, o ser humano estaria a desrespeitar cada animal, individualmente, por vê-lo apenas como um exemplo das caraterísticas da sua espécie, uma vez que é justamente do indivíduo e das suas peculiaridades que nascem as alterações geracionais e a evolução se confirma.

Nos louvores, também resumidamente, apontavam-se alguns jardins zoológicos como bons exemplos de promoção de uma revolução nas prioridades de cada animal, enquanto indivíduo, uma vez que, estando garantidas algumas condições que não existem no mundo natural, como a ausência da dualidade predador/presa, haverá condições para que cada animal se possa redefinir biologicamente, evoluindo para outras dimensões, outras capacidades, novas competências. Afinal, só quando o Homem descobriu como controlar o fogo é que começou a sonhar, consolidando passos da sua evolução.

Assim que fechei o dossier decidi, imediatamente que, sendo tema que fugia completamente à minha alçada, o melhor seria entregá-lo aos meus amigos do GIP e depois se veria.

Nunca mais vi o Daniel, nem o pai, nem os dois ao mesmo tempo, desde esse fim de semana. O Daniel nunca mais apareceu nas minhas aulas e o nome dele, misteriosamente, desvaneceu-se da lista dos alunos.

Alguns dias depois cruzei-me com a diretora e lembrei-me de comentar-lhe o sucedido, reportando-lhe desde essa semana, não só a ausência do Daniel, como o desaparecimento do seu nome na lista. Respondeu-me:

- Qual aluno, qual Daniel?

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