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Arquivo Municipal de Santiago do Cacém . 1976 junho

“Na neorromântica Igreja de Nossa Senhora da Abela, do século XIX, aquando das comemorações do seu centenário, que ocuparam todo o mês de junho de 1976, o povo foi confrontado com o horror de ver profanada, de forma incompreensivelmente violenta, alguma da estatuária decorativa, nomeadamente uma imagem da mãe de Cristo a combater um dragão. Nesta simbólica representação da vida a lutar contra o seu extermínio, a cabeça da virgem fora arrancada enquanto a restante escultura se encontrava enrolada num emaranhado de fios de telefone.

Este acontecimento, logo entendido por alguns como um sinal simbólico e penalizador, levou ao adiamento da procissão que iria decorrer nesse domingo, dia 20, para dar lugar às investigações, imediatamente exigidas por António Elias Simões, natural da Abela e Presidente da Comissão Administrativa de Santiago do Cacém,”

 

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Jornal O Leme . 2000 agosto

“Durante o início deste mês de agosto ainda decorreram as últimas negociações entre a Câmara Municipal de Santiago do Cacém, a Junta de Freguesia de Santo André, o Ministério do Ambiente e a organização ambientalista Quercus, com vista à criação da Reserva Natural das Lagoas de Santo André e da Sancha.

Durante os últimos seis meses, variados técnicos da CAC (Comissão de Análise à Candidatura) visitaram o local para presenciar a realidade dos documentos em discussão, definindo, com as entidades, o tipo de reserva que melhor servirá este ecossistema e as populações em redor, oficializando-o em documento, assinado, publicamente e na passada quinta-feira, nas margens da Lagoa de Santo André, numa das últimas cabanas de colmo que ainda permanecem de pé, herança das gentes que aqui se fixaram no séc XIX, oriundas do distrito de Aveiro.

Ultrapassadas as barreiras à criação da Reserva, dos relatórios da CAC, acompanhados entusiasticamente pela população local, ficar-nos-á na memória, sem dúvida, entre outras singularidades, um episódio que ficou conhecido como o Caso das Garrafas.

Em 8 locais diferentes e inesperados foram encontradas e fotografadas um total de 12 garrafas vazias, tendo-se, nalguns casos, conseguido provar que momentos antes as mesmas não se encontravam lá.

O mais curioso, contudo, nem chega a ser a circunstância dos seus aparecimentos incompreensíveis, mas o facto, mais bizarro ainda, de todas as garrafas e respetivos rótulos serem, comprovadamente, do séc XIX e todos de bebidas americanas, como R White’s Lemonade, Dr Pepper e Pemberton’s French Wine Coca.”

 

 

Pacífico Maria Figoldes

 

Caros leitores, desde que as Nações Unidas e a organização cultural Eixo Solto arrancaram com o seu Programa Internacional de Acordos Pontuais (PIAP), que bastantes temas têm estado a ser desenvolvidos globalmente e os mais curiosos gabinetes têm sido criados, como o dos Criptídeos, o da Colonização Espacial Subterrânea, o das Impossibilidades Geofísicas e o dos Fósseis Futuristas.

O PIAP publicou durante o mês passado, na sua página oficial, o habitual relatório anual de atividades, onde não pudemos deixar de reparar nos elogios agradecidos ao contributo que o português Yama-GIP tem dado, na resolução de muitos mistérios do mundo. Só o gabinete das Impossibilidades Geofísicas refere 36 contribuições decisivas dos GIP, internacionalmente, 8 das quais atribuídas ao nosso Yama-GIP.

Foi justamente para tentar perceber que instituição é esta que leva o nome do nosso país além fronteiras, quase desconhecida por cá, que decidi entrevistar a Dra Francisca Ament Luiz, coordenadora-médium do Yama-GIP, sediado na costa alentejana, nos interiores perdidos do mais extenso concelho português, Odemira.

 

Pacífico Maria Figoldes – Quero, antes de mais, agradecer a sua disponibilidade, pois sei que tem a agenda extremamente preenchida. Aliás, foi difícil conseguir que alguém do Yama-GIP pudesse falar comigo, pois todos têm muitos casos em mãos. Começo, desde já, por lhe perguntar o que faz um GIP, no sentido, também, de perceber que tipo de serviço é esse que tanta procura tem.

 

Dra Francisca Ament Luiz – Sim, de facto, andamos cheios de trabalho. O único outro GIP a operar em Portugal, o Alfé-GIP, em Trás-os-Montes, passou a dedicar-se inteiramente à investigação laboratorial, pelo que, de momento e em toda a Península Ibérica, só nós fazemos serviço público.

Chamamo-nos Yama-GIP, nome composto por Yama (divindade hindu da morte) + Grupo de Intervenção Paranormal, e, como trabalhamos com a atividade post mortem, no nome de qualquer agente GIP há sempre um avatar extraído de mitologias da morte, no meu caso é o apelido Ament, em homenagem a uma divindade egípcia do além. Somos uma divisão da ONEK (Ordem Neokardecista mundial), por isso definimo-nos como espíritas neokardecistas, o que quer dizer que temos Allan Kardec como ponto de partida, mas distinguimo-nos, não só de outras doutrinas de semelhante área de intervenção, como o Umbanda, os Roustanguistas e os Racionalistas Cristãos, mas também do próprio Kardecismo original, por termos eliminado a Moral do trinómio das formas clássicas do conhecimento (Ciência, Filosofia e Moral), com todas as suas implicações.

 

 

P – São então uma organização espírita neokardecista, um Grupo de Intervenção Paranormal. Intervém, portanto, não no mundo, dito, normal, mas no paranormal, ao nível dos espíritos, mas intervém como? São procurados por clientes? É a ONEK que vos dá o plano de ação? Trabalham para outras organizações? O que faz exatamente um GIP ou, particularizando, o que tem feito o Yama-GIP?

 

F – Um GIP é um grupo de cientistas operacionais, que trabalha com conceitos bastante técnicos, pouco conhecidos do cidadão médio. Não será eficaz explicar em detalhe as nossas ferramentas, por isso, proponho-lhe o seguinte:

Uma vez que todas as intervenções espirituais de um GIP só são concluídas com a elaboração de uma Conclusão e, por coincidência, um dos casos referidos no relatório anual do PIAP, inteiramente resolvido por nós, aconteceu cá em Portugal, aqui mesmo, perto da nossa sede, no concelho de Santiago do Cacém, e se eu lhe fosse fazendo um pequeno resumo dessa Conclusão, aproveitando a boleia para irmos esmiuçando alguma da terminologia utilizada?

 

P – Excelente. Avance.

 

F – Dois anos atrás, por volta do dia 2 de novembro, o casal Rui e Sandra, em Vila Nova de Santo André, apercebeu-se de uma pequena mancha no teto da sua sala de estar, que atribuiu à humidade, até mesmo porque a casa onde ainda habitam tem historial nesse sentido. 

Mais ou menos a partir do dia 10, a suposta mancha de humidade desenvolveu-se em três formas distintas, uma redonda e pequena ao centro, ladeada de duas elípticas e mais longas, assemelhando-se muito à silhueta de uma ventoinha de teto.

Na mesma sala, no dia 13, mesmo por baixo das manchas, apareceram duas folhas de papel amarrotadas, cada uma com uma lista escrita à mão, ao jeito de listas de compras ou de ingredientes.

Numa podíamos ler nomes como “óleo de néroli”, “coentros”, “extrato de baunilha”, “fluido de coca” e “óleo de limão".

Na outra só se encontrava a palavra “mercadoria” repetida, mas numerada: “mercadoria 1”, “mercadoria 2“, até à “mercadoria 9”. Contudo, dois dos números diferenciadores das ditas “mercadorias” apareciam riscados, o 6 e o 9.

Antes de nos envolver, o casal pedira uma avaliação técnica às manchas, tendo-lhes sido negada, pelos peritos, qualquer possibilidade de terem sido causadas pela humidade.

 

 

P – E porque é que eles vos contactaram, quero dizer, com que justificação?

 

F – Tendo contado o sucedido em grupo de amigos, que os conhecem como um casal não sobrenaturalista, mas aberto ao inverosímil, alguém lhes sugeriu os nossos serviços, no sentido de os ajudar a perceber os acontecimentos.

 

P – E depois, que passos deram?

 

F - Além da fotografia que tirámos, como prova, da curiosa composição de manchas no teto, eles facultaram-nos as folhas, amarrotadas, com as listas.

Depois de termos pesquisado, em variadíssimas fontes, combinações dos ingredientes da primeira lista, todos os resultados apontaram para a receita original da Coca-Cola, não a que se usa hoje em dia, mas a original, do séc XIX. Entre outras razões menos sonantes, o facto de ainda conter “fluido de coca” desatualizava a receita, impossibilitando a sua relação com os tempos de hoje, já que em 1903 o “fluido de coca” (cocaína) foi substituído por “folha descocainizada de coca”, passando desde então a ter um efeito apenas aromatizante.

Antes de qualquer conclusão precipitada, ainda enviámos uma foto da primeira lista ao historiador americano Mark Pendergrast, autor do livro “Por Deus, pela Pátria e pela Coca-Cola”. Em resposta, Pendergrast não só nos confirmou que na lista, de facto, constavam os ingredientes da receita original, a primeira, como, pela análise que fez à caligrafia, não teria reservas em afirmar que fora escrita pelo próprio inventor da bebida, John Pemberton, situando-a, portanto, na década de 1880.

Sobre a segunda folha, durante as pesquisas que fizemos à história da Coca-Cola, conseguimos estabelecer um paralelo com uma história mal explicada de uma lista onde dois de 9 ingredientes terão sido excluídos para não facilitar a cópia (exclusão simbolicamente representada pelo facto de 2 números da lista das “mercadorias” aparecerem riscados). Confirmava-se, portanto, a relação de ambas as listas à Coca-Cola.

Quanto à configuração das manchas do teto, não pareceu haver dúvidas: remeteu-nos para uma ventoinha de teto – eletrodoméstico inventado também na década de 1880 (tal como a receita de Pemberton) e dominante nos sistemas de arrefecimento de interiores até ao boom dos ares condicionados, já na década de 1950.

A única coincidência entre as provas, como ponto de partida e confirmação de que poderíamos estar no caminho certo, foi o facto de ambas (Coca-Cola e ventoinhas de teto) terem sido inventadas no século XIX.

  

 

F - Na segunda visita que fizemos ao casal levámos connosco um detetor de ectoplasma e se, por um lado, não encontrámos nenhum sinal de atividade no exame que lhes fizemos, já na habitação conseguimos assinalar um rasto ectoplásmico que apesar de não ser consistente como uma assinatura, marcava presença espiritual.

 

P – Se calhar este é um bom momento para explicar um pouco a questão do ectoplasma. Se não se importar…

 

F – Claro, recuemos um pouco no tempo.

As variadíssimas biografias de Allan Kardec são unânimes quanto à importância do neurocientista de Dortmund, Franz Rosmat, seu grande amigo, na orientação das suas ideias.

Apaixonado pelas tradições egípcias do terceiro olho, este visionário alemão avançaria com a hipótese, posteriormente confirmada, da existência de glândulas cerebrais (hoje conhecidas por Glândulas Rosmat) capazes de sintonizar as ondas do cérebro naquilo a que já Kardec chamava as frequências interdimensionais, as que abrem ligações entre o mundo dos vivos e de todos os outros.

Kardec também confirmaria que são poucos, a quem chama médiuns, os que conseguem, pelo menos uma vez ao longo da vida, ativar, consciente ou inconscientemente, as Glândulas Rosmat.

Logo no início do séc XX, com novo cruzamento de dados, compreender-se-ia o mecanismo energético que permite que as Glândulas Rosmat se ativem, o Fluxo Etéreo-Espiritual. Durante este fluxo, o médium produz um elemento chamado ectoplasma e é neste contexto elétrico que as Glândulas Rosmat interferem nas frequências cerebrais, sintonizando, na maioria dos casos acidentalmente, o cérebro com o mundo suprafísico. 

Os cientistas transumanistas avançariam, logo a seguir, não só com a identificação universal de inúmeras frequências interdimensionais, como até as diferentes intensidades de ectoplasma que cada médium terá de produzir para atingir cada uma.

O Fluxo Etéreo-Espiritual de cada médium deixa um rasto ectoplásmico único, a sua assinatura ectoplásmica, e pode permanecer ativo no local onde foi libertado por tempos indefinidos, havendo registos de décadas de intervalo entre fenómenos, estimulados pelo mesmo fluxo, pela mesma assinatura.

Ao usarmos o detetor de ectoplasma na casa do Rui e da Sandra, conseguimos sinalizar evidências de atividade Rosmat na habitação, mas, por serem pouco nítidas, nada conseguimos saber sobre a sua origem, pelo que nos concentrámos antes na identificação do espírito que teria saltado para este mundo.

 

 

 

P – E que tipologias espirituais vos pareceram estar envolvidas neste caso?

 

F – Tendo em conta que tínhamos objetos que se materializaram (as listas), uma interferência no mundo físico (o desenvolvimento da mancha no teto) e a presença de um rasto ectoplásmico, selecionámos 4 frequências com potencial para explicar o evento, duas de baixa frequência (e baixa voltagem) e duas de alta frequência (e alta voltagem).

Nas frequências de voltagem baixa, onde o fluxo não exige muito ectoplasma, considerámos duas tipologias espíritas, ambas de espíritos exteriores, ou seja, de espíritos que não interferem diretamente com o médium que o trouxe, apenas à sua volta: os Orixás (entidades identificadas originalmente pelo afro-brasileiro Candomblé) e as Assombrações.

Os Orixás são o fenómeno mais comum do mundo espírita e só se manifestam na materialização de objetos simbólicos, como velas, ferramentas ou fruta, não havendo em nenhum dos registos de tudo aquilo que os Orixás já fizeram misteriosamente aparecer, qualquer referência a palavras escritas, pelo que a informação demasiado detalhada das listas fez-nos abandonar esta hipótese.

Avançámos para as Assombrações, não tão frequentes como os Orixás, mas, ainda assim, bastante comuns.

As Assombrações são espíritos exteriores, como os Orixás e qualquer outro espírito que se manifeste em baixa voltagem, porém são reivindicadoras e territorialistas.

Termos pensado nas Assombrações não teve a ver com o facto de termos encontrado um rasto ectoplásmico na habitação do Rui e da Sandra, pois quando uma Assombração entra no nosso mundo, poucas vezes se manifesta perto do médium, recolocando-se imediatamente no local que, associado a alguma das suas memórias de vivo, vai reivindicar como seu, não o abandonando mais, tornando a vida num inferno a qualquer vivo que pretenda fazer uso desse espaço.

As manchas no teto, por seu lado, implicavam um tipo de interferência que podia ser de uma Assombração e quanto às listas, apesar de estas não serem materializadoras como os Orixás, com a capacidade que têm em interferir no mundo físico, podiam perfeitamente tê-las gerado a partir de um objeto qualquer.

O aspeto dissonante teve a ver com o facto de que tudo, na casa do Rui e da Sandra, aconteceu apenas no espaço de duas semanas, como um caso isolado; e de que uma Assombração, quando se instala, não assombra uma vez só, mas sempre, até conseguir recuperar só para si o que lhe terá pertencido, expulsando os invasores.

 

 

P – Seguem, portanto, uma linha de despistagem.

 

F – Exatamente. Aventurámo-nos então no mundo da alta voltagem, dos espíritos possuidores (Incubus e Poltergeists), onde as altas frequências atingidas pelas Glândulas Rosmat forçam a produção de um ectoplasma muito mais denso, debilitando o médium, incapacitando-o ao ponto de nem conseguir controlar o seu próprio corpo, ficando inteiramente à mercê do espírito.

Começámos pelos Incubus, ou Possessões Demoníacas.

As listas e as manchas não encaixariam à partida na identificação da ação de um Incubus, já que estes são espíritos exclusivamente possuidores, não interferindo no mundo físico. Porém, há casos em que os médiuns possuídos não se lembram de ter deslocado objetos pelo que podiam ter elaborado as listas e provocado as machas do teto sem se lembrarem. 

Contudo, como os Incubus interferem sempre de forma visível nos comportamentos do possuído e não são nada discretos, nem no Rui nem na Sandra encontrámos indícios da sua presença.

 

P – Agora que refere as possessões, é possível o diálogo entre a parapsicologia e o espiritismo neokardecista?

 

F – Cruzamos muita informação com parapsicólogos, cujo trabalho respeitamos, mas acabamos por ter interpretações diferentes dos fenómenos, optando por outras metodologias para os abordar.

Pois, ao nível das possessões, a maioria dos parapsicólogos não reconhece Poltergeists nem Incubus como entidades autónomas, atribuindo as suas manifestações unicamente à ação psicocinética inconsciente do médium.

Nos nossos registos, porém, há casos em que, quando o Poltergeist fala pelo médium, demonstra saberes que são completamente alheios ao possuído, revelando-se enquanto indivíduo, de biografia independente.

 

P – Passaram então à hipótese dos Poltergeists?

 

F – Exatamente. Apesar de se evidenciarem através do comportamento dos possuídos, ao contrário dos Incubus, os Poltergeists podem, se o quiserem, ser bastante discretos e costumam revelar uma inteligência acima da média. Não há um padrão de comportamento e até de previsibilidade na ação de um Poltergeist, havendo registos de personalidades extremamente diversas, que podem ir dos “Rejeitados do Portal de Pedro”, Poltergeists vagabundos, vingativos e violentos, até aos “Espelhados”, Poltergeists de personalidade amistosa, fraterna, cooperativa e até brincalhona, que permanecem durante anos em atividade com o mesmo médium, auxiliando-o e até consolidando com este relações de amizade e companheirismo.

Apesar de o comportamento dos Poltergeists poder ser discreto, a sua ação já se teria manifestado de alguma outra forma, sem ser apenas no caso das listas e das manchas, pelo que percebemos que também não seria por aqui a solução.

 

 

P – Beco sem saída?

 

F – Quase, restava-nos uma última hipótese, a mais rara, a menos conhecida, a mais especulativa, aquilo a que já Kardec chamava Passagens Interdimensionais e que no neokardecismo conhecemos por Fugas.

 

P – Não poderíamos também falar de fugas nos casos que já referiu, Orixás, Assombrações, Incubus e Poltergeists, no sentido em que também há uma passagem para este mundo?

 

F – Podemos pensar elasticamente na palavra Fuga e entendê-la assim. A forma como nós a utilizamos difere dos casos que referiu, porque aqui temos uma tentativa coletiva de passagem. Nos casos anteriores falávamos sempre de um espírito de cada vez, já o que carateriza a Fuga é esse associativismo espiritual.

 

P – Paremos um pouco. Os espíritos associam-se? Isso implica que se conheçam, certo? Então tem de haver algum tempo ou lugar ou sei lá que outra dimensão onde os espíritos entrem em contacto uns com os outros. Estou a pensar bem?

 

F – Sim, existe mesmo esse local onde a vida e a morte se contaminam mutuamente. Chama-se Portal de Pedro e é onde os arcanjos Anúbis e Perséfone residem, sendo deles a função de regular o tráfego dos espíritos que estão em trânsito entre encarnações.

A sua vigilância é apertada e nunca um segundo espírito consegue passar na mesma frequência ativada, por ser imediatamente bloqueada por Anúbis e Perséfone.

 

P – Para haver uma Fuga, então, como ultrapassar essa supervisão tão apertada?

 

F - No início da década de 1960, perto da pirâmide de Teotihuacán, a curandeira mexicana Maria Sabina, em estado de alucinação psicadélica, contactou com uma entidade que lhe ditou a cantar uma pequena quadra, à qual a própria nunca foi capaz de atribuir qualquer significado coerente:

“Só se rompe a teia dos arcanjos

quando o calor se interrompe abruptamente

e as existências se encaixam

noutras existências dos seus tempos.”

Em 1976, numa viagem ao México, o brasileiro Chico Xavier acabaria por encontrar-se com Sabina, dando-lhe esta, então, a conhecer as palavras que durante tanto tempo a intrigavam. Para Chico Xavier, esta quadra, a que chamou Chave, fez imediatamente sentido.

Era a Chave para compreender as Fugas e é graças às sucessivas interpretações que têm sido feitas desta única quadra que hoje compreendemos melhor o que está em jogo quando Anúbis e Perséfone (os “arcanjos” da Chave) se “distraem”.

 

 

P – Então já percebi que os “arcanjos” são Anúbis e Perséfone. “A teia” será uma metáfora para a sua vigilância?

 

F – Inicialmente sim, até que se descobriu o fenómeno a que chamamos Rede Panteneural, que é a “vedação” que separa os vivos (o nosso mundo) dos restantes.

 

P – A primeira condição apresentada para se romper “a teia dos arcanjos” é “quando o calor se interrompe abruptamente”. De que forma resolveram este verso na confirmação de que seria uma Fuga?

 

F – No espiritismo, qualquer interrupção de “calor” significa cessação de vida porém, têm de ser mortes no plural, pois uma só não “rompe a teia”.

Como as provas nos remetiam para o século XIX procurámos tragédias coletivas que pudéssemos associar a John Pemberton, dado termos até a sua caligrafia.

Não foi preciso procurar muito, pois o próprio Pemberton se suicidou juntamente com outros 5 frequentadores do AzraelSleep, um bar-saloon famoso pelos clientes alternativos e, já agora, pela decoração atualizada, uma vez que surge retratado num jornal da época já com uma ventoinha de teto.

 

P - E como é que “as existências se encaixam noutras existências”?

 

F – Antes de mais convém referir que quando falamos de percursos espirituais, não usamos medidas inferiores ao século, dado estarmos a tratar de entidades sem prazo. Assim, quando a  Chave refere que “existências se encaixam noutras existências dos seus tempos”, ou seja, contemporâneas, procurámos, não na década específica dos acontecimentos, a década de 1880, mas em todo o séc XIX, pessoas com as quais pudéssemos estabelecer um paralelo de personalidade com os suicidários do AzraelSleep. É claro que, para começar, precisámos de definir o perfil destes 6 malogrados para perceber o que é que tinham em comum.

E os seis eram Alexander Graham Bell, o homem que inventou o telefone; Charles Emper Glitou, suspeito nunca comprovado do assassinato de Lewis Astring, autor da chamada Lei Seca e assessor do 28º presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson; J S Pemberton, o homem que inventou a fórmula da Coca-Cola, farmacêutico experimentalista viciado em morfina; Bruce Doning, camarada de guerra de Pemberton, condenado em tribunal militar por insubordinação; Catherine Deshayes, a única mulher do grupo, cega e filha de pai branco e mãe índia, de quem se diz que conseguia distinguir as cores pela temperatura; e John Pluto, o dono do AzraelSleep e ativista destemido contra o puritanismo antibebidas.

  


P – E qual foi o denominador comum?

 

F - Pessoas com biografias singulares, únicas e não representativas da sua época.

Como Vila Nova de Santo André só foi criada no século XX, tivemos de pesquisar a realidade do concelho de Santiago do Cacém do séc XIX, onde o padre António Macedo, claramente, nos permitiu fazer um paralelo com os clientes do AzraelSleep, não por qualquer disfuncionalidade social, mas pela singularidade do seu pensamento (que o fazia insurgir-se contra a conveniente ignorância do povo), o que o torna, tal como aqueles, pouco representativo da sua época.

 

P – Assunto encerrado?

 

F – Não propriamente.

Repare, tínhamos um grupo de 6 espíritos do séc XIX que, por ser em número suficiente, teria conseguido furar a teia dos arcanjos e passar para este mundo, deixando marcas contretas dessa Fuga, as manchas no teto e as listas, mas faltava-nos o principal, os espíritos. Onde estavam?

 

P – Sim, onde estão?

 

F – Não estão.

A ausência de um rasto estoplásmico significativo forçou-nos à conclusão de que os objetos que nos chegaram eram, afinal, marcas de tentativas infrutíferas de transitar entre mundos. Pode ter havido variadíssimas razões para isso, como por exemplo, o médium em causa não ter produzido ectoplasma suficiente.

 

P – Deixe-me pôr-lhe uma questão. Uma vez que o suicídio coletivo ocorreu no séc XIX, será que esta foi a sua primeira tentativa de Fuga, não terá havido outras?

 

F – Foi justamente na tentativa de compreender esse percurso, que procurámos, aqui do concelho de Santiago do Cacém e em inúmeras fontes, acontecimentos que tivessem ficado por explicar.

Deparámo-nos, então, com dois casos: um na Abela, em 1976, em que um emaranhado de fios de telefone (óbvia referência a Alexander Graham Bell) aparece à volta de uma estátua, e um posterior, já em 2000, nas margens da Lagoa de Santo André, com o aparecimento misterioso de uma dúzia de garrafas americanas do final do séc XIX, em clara representação de John Pluto, que as terá vendido no seu AzraelSleep.

 

P – Caros leitores, terminamos esta entrevista, certamente, mais esclarecidos, mas também algo amargurados.

Não poderemos nunca mais olhar para os objetos que nos aparecem de forma inesperada e incompreensível apenas como lapsos da nossa memória.

A partir de agora, dar-lhes-emos certamente outro tipo de atenção, no sentido de perceber se não serão indícios de mais uma história mal resolvida entre a vida e a morte.

É com esta inquietação que vos deixo.

 

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