Hoje quebrei uma regra minha de há uns anos, não falar do meu “25 de
Abril”. Se vivi o que se passou não foi devido a nenhuma originalidade
meritória, mas tão só a um contexto de afunilamento com que milhares como eu
acabaram por se ver confrontados. Nos primeiros anos contei e recontei tudo
isto a toda a gente que queria ouvir mais um testemunho. Depois fartei-me.
Deixei simplesmente de o fazer. Por vezes até minto e digo que estive o tempo
todo na Alemanha e por isso só pude acompanhar o acontecimento pelos meios de
comunicação social, à distância.
Hoje, porém, estou num contexto diferente. Estou a trabalhar com
estrangeiros que estão em Portugal a tirar um desses novos Cursos de
Nacionalidade (CN).
Terão surgido à volta de cinco anos estes CN, um trabalho conjunto
entre diferentes pastas governamentais, como a Cultura, o Turismo, a Educação e
os Negócios Estrangeiros. Pretende-se que durante 12 meses os alunos (adultos)
frequentem uma série de aulas ou sessões de formação.
O protocolo internacional (assinado por 34 países) que gerou estes CN
estabeleceu que os cursos só podem acontecer no país cuja nacionalidade estiver
a ser estudada, que 40% do tempo formativo será com uma área chamada Língua e
Comunicação, 30% serão para uma História e Geografia nacionais, e os restantes
30% ficarão ao critério de cada país, de cada zona, ou mesmo de cada
instituição que ofereça o curso, desde que se cumpra o objetivo de “evidenciar
singularidades individuais, locais, regionais e/ou nacionais, num contexto de
cultura global”.
É a minha primeira experiência neste contexto formativo e o grupo de
alunos que me calhou (não sei se são todos assim) é extremamente motivador pois
quer sempre saber muitos COMOS e muitos PORQUÊS.
Como temos uma sessão semanal de quatro horas, para criar alguma
diversidade metodológica, inventei uma atividade que consiste numa apresentação
oral sobre algo pessoal (intercalando eu e eles). Ou seja, uma vez por semana,
alguém vai à frente do grupo e fala durante uns minutinhos (em português,
claro) sobre qualquer coisa que tenha a ver consigo (pode ter algo a ver com o
seu país ou não).
Inicialmente a ideia seria partilhar um pouco dos diferentes países,
já que temos 6 nacionalidades diferentes, mas a coisa resvalou, e muito bem!,
para o percurso biográfico.
Como são cada vez mais personalizadas as apresentações, este grau de intimidade (a juntar à grande curiosidade que eles sempre demonstraram pela história nacional recente) levou a que me apetecesse voltar a falar da minha experiência de Abril.
Assim, hoje, lá partilhei a história com eles. Apesar do tempo que já
passou, continuo sempre a emocionar-me quando conto isto e, por vezes, a
história ganha outros rumos e esqueço-me de pontos importantes. Prevendo isso,
escrevi o texto e aqui o deixo:
Vou-vos contar a minha história no 25 de Abril. Entendam bem, não vou
contar a história do 25 de Abril, conto apenas o que vivi.
Nem tudo o que conto é retirado diretamente das minhas memórias (na
altura tinha ainda 6 anos). Como é uma história que sempre nos orgulhou de
contar, sempre a contámos. Com o acrescentar de informações que fui ouvindo ao
longo dos anos, já me confundo: não sei se vos conto tudo o que a minha memória
desses dias guardou ou tudo o que fui guardando ao longo dos tempos na memória
desses dias. De qualquer forma, tentarei ser o mais fiel possível ao que
verdadeiramente (me) aconteceu.
Para falar disto tenho de falar do meu pai, que é o meu super-herói.
Sempre foi. Era uma pessoa bizarra, logo singular e admirável. Nunca vi maior
contraste de atitudes em alguém: se podia passar um dia inteiro sem dizer nada
que tivesse jeito, em raros momentos e com as pessoas certas revelava todo o
seu potencial argumentativo, de grande consciência social.
Tinha uma caraterística que o levou a ter alguns problemas ao longo da
vida: se, em momentos mais sérios de debate, por um lado, era
extremamente calado e raramente intervinha sem ser solicitado, por outro, não
conseguia mentir quando lhe pediam a opinião.
Isto só foi um problema porque a sua opinião era contrária às ações do
regime. Ora, uma vez aqui, outra vez ali, as suas ideias e a sua pessoa foram
sendo notadas pela dissidência. Essa fama de que já era alvo, quase levou a
família da minha mãe a proibi-la de, em 1961, começar a namorar com ele.
Lembro-me de eles contarem que só tinham autorização para namorar às
quintas-feiras, na sala de estar dos meus avós, com a minha avó lá. Santa
ignorância!, é claro que eles se encontravam sempre que podiam, só não o faziam
era com conhecimento e consentimento oficiais.
O inevitável, no entanto, acabou por se dar e, em 1963, um amigo da
família que trabalhava numa secção da PIDE, avisou o meu pai que durante os 5
dias seguintes alguém o iria buscar para ser interrogado. Toda a gente sabia o
que isso queria dizer e ninguém tinha a certeza de voltar a ver alguém que
tivesse sido levado para interrogatório. No dia seguinte, o meu velhote
encontrou a minha mãe (fez com que parecesse espontâneo) e disse-lhe que iria fugir
do país nessa noite, que gostaria que ela fosse com ele, que se quisesse para
estar no sítio tal-tal às 3 da manhã.
Lá foram.
Entre longos trajetos a pé e algumas boleias, meio combinadas, meio
espontâneas, todas clandestinas, chegaram a terras de Espanha.
Até 1965 os meus pais viveram em Barcelona. Lá se reuniram pessoas com
semelhantes formas de pensar e nisso do exílio encontraram apoio entre pares. O
passar do tempo foi organizando opiniões em partidos, pessoas em pontos na
hierarquia e uma grande vontade de mudar a forma de poder existente em
Portugal.
No entanto, contra a opinião do meu pai, o conceito de sociedade
vertical desenvolveu-se, ainda que de forma democrática, contra, portanto, o
regime autoritário de então, logo, com uma vontade de valorizar a noção de
liberdade já comum nas sociedades então contemporâneas. É claro que perante tal
cenário de previsibilidade associativa, o meu pai decidiu abandonar esta
pequena sociedade e rumar a Berlin (onde eu nasceria em 1967).
Ele nunca gostou de pertencer a associações e muito menos àquelas que
defendiam qualquer tipo de disciplina de voto ou submissão hierárquica. O seu
lado gentil e reservado impediu, no entanto, que tivesse algum tipo de
desentendimento ou discussão personalizada. Por isso saiu de lá deixando amigos
com quem foi sempre mantendo contacto. Sempre o ouvi falar bem deles, que
sentia muito boas intenções nos seus projetos, só lhes lamentava alguma falta
de criatividade, o que os levava sempre a querer adotar modelos importados,
como a desejada democracia representativa, que ele abominava.
Chegaram a Berlin. Como ele já tinha a experiência daquele grupo de
Barcelona, decidiu não se juntar a nenhum outro que o limitasse nas suas
opiniões. Resolveu imiscuir-se de forma mais eficaz na sociedade alemã, que o
recebeu bem e pela qual sempre sentiu uma grande gratidão. Lá trabalhou como
chauffeur particular de um magnata que procurava desesperadamente, mais que um
motorista, um amigo.
A capacidade argumentativa e as honestidade e lealdade do meu pai
despertaram no seu boss o reconhecimento da pessoa ideal e a relação entre eles
consolidou-se fraternamente. Mesmo já depois de ter regressado definitivamente
a Portugal, continuaram a relacionar-se. De tal forma que, quando o meu pai
morreu, o senhor fez questão de alugar um avião para vir ao funeral.
Convém assinalar que desde que os meus pais deixaram Portugal (por
questões óbvias de segurança) houve um longo período sem contactar a família
(que eu nem conhecia). De referir que só nos últimos dois anos tinham
conseguido fazer-lhes chegar informações de que estariam bem, algures no norte
da Europa, e também só então receberam notícias de lá (essencialmente
casamentos, nascimentos e mortes). Apesar de todas as precauções (que levaram
os meus pais a sair de casa sem deixar nenhuma informação a ninguém) os meus
avós e familiares ainda foram perseguidos e até interrogados, mas, como o meu
pai nunca foi ativista, a coisa morreu e, para as autoridades, acabou por ser
um caso arquivado.
Portugal, na realidade berlinense, parecia esquecido. A distância, o
tempo, a vida parecia tê-los transportado para outra galáxia, outra dimensão,
onde a sua vida portuguesa e encarnações passadas seriam já quase a mesma
mitologia. Mas não eram, porque apesar dos silêncios prolongados nisto de
verbalizar as memórias, em certos dias bastava uma pequena imagem para fazer
brilhar o interior não autorizado e o meu pai deixar escapar um “qualquer dia
vamos lá”. Mas nunca mais íamos.
Até que no sábado, dia 20 de abril de 1974, no fim do expediente, o
meu pai chegou a casa e disse à minha mãe: “Vou com o carro ao mecânico afinar
umas coisinhas e no entretanto faz as malas que daqui a 3 horas vamos a
Portugal ver a família. Ok?”. Disse-lhe isto assim, do nada, sem rede – muito
ao seu estilo.
“Ver a família” despertou na minha mãe uma euforia nunca vista. Uma
chama vinda de nenhures trouxe-lhe a energia que ela precisou para em pouco
mais de duas horas ter tudo pronto e estar à espera dele. Lá arrancámos.
Na noite de 22 jantámos em Barcelona. Fomos ter ao mesmo local onde
eles viveram antes e no mesmo local de encontro se encontraram mais uma vez com
todo aquele Portugal substantivo. Lembro-me da ambiência do jantar, sótão
sombrio, pessoas com muitos pelos, sons de copos e garrafas e muito fumo
começado por C: cachimbos, cigarros, cigarrilhas, charutos cubanos e charros.
Nessa noite de 22, toda a gente brincou comigo. Pessoas importantes,
que hoje aparecem nos jornais e ocupam cargos bem pagos, traziam-me ao colo,
aos ombros; um que já foi ministro (e que deixou muito a desejar…) fez desenhos
numa folha para eu colorir. Havia uma senhora, que na altura tinha cabelo às
cores (hoje grande escritora), que me contou uma história para adormecer.
Eu tenho desse momento uma memória de grande carinho e acolhimento e
para os meus pais foi um quase ver a família, um reencontro cheio de alegria
incontrolada, mas de atitude contida em palavras meio ditas, frases simbólicas,
códigos. Mesmo ali, no antro da oposição, os opositores temiam os vigilantes
distantes do regime, os tentáculos pidescos e, por isso, o falar abertamente
nunca existiu. Mesmo ali, no antro da oposição, houve sempre momentos de
reuniões sectárias. Nem tudo era dito a todos ao mesmo tempo, havia reuniões
com as pessoas x, y e z, depois com as y, z e w, depois com x, w e k, etc.
A minha mãe, por exemplo, nunca foi convocada para nenhum desses
momentos – o que nunca a preocupou, antes pelo contrário, odiava aqueles
secretismos (apesar de os compreender). Numa dessas reuniões em que o meu pai
participou foi elaborado um mapa de acesso ao país. Nunca lhe perguntei se o
trajeto fora pensado para evitar que eles viessem todos em caravana e pudessem
dar nas vistas, ou para evitar cruzarem-se com as forças da ordem espanholas,
ou…
Antes do almoço do dia 23, arrancámos os três rumo a Portugal. Como só
entrámos no país na noite de 24 para 25, dá para perceber que não tomámos o
caminho mais rápido. Só na manhã do dia 24 é que soube porquê.
Tínhamos parado há cerca de meia hora para “café & WC” quando
voltámos a estacionar. Nessa altura eu perguntei ao meu pai porque parávamos
outra vez, confusa com isto de estarmos a parar, aparentemente, por tudo e por
nada. Então ele mostrou-me a razão da nossa viagem serpenteada: o mapa. Compreendendo
toda a Península Ibérica, nele tinham sido assinaladas a vermelho as estradas a
percorrer por nós. Nessas linhas de estrada estavam marcados pontos com hora e
dia.
Quando parámos desta última vez, eram 3 da tarde. O meu pai apontou
para um monte que se via no horizonte e disse-me: “Estás a ver aquele monte
ali? Só lá podemos chegar às 18:00. Como não devemos demorar mais de 45 minutos
a chegar lá, aguardamos aqui à sombra.”
A partir desse momento transformei-me na co-piloto (impensável para a
minha mãe, que enjoava só de ler as placas das localidades, quanto mais um mapa
com letrinhas pequeninas) e isso transformou a nossa viagem monótona e
incompreensível em algo fantástico e de grande teor aventureiro. Na linguagem
do meu pai as localidades transformaram-se em planetas, as estradas em vias
lácteas e os aliens (criaturas terríveis, a evitar) eram os maus de quem nós
escaparíamos sempre, se seguíssemos à risca as instruções do mapa.
Com toda esta brincadeira chegámos a Portugal de noite, entrámos no
país por uma série de atalhos (caminhos de cabras) e, estava o sol a nascer,
chegámos aos limites urbanos de Lisboa. A minha mãe dormiu todo este último
troço e só acordou quando estacionámos, só aí se apercebeu de que estávamos na
capital, longe da aldeia natal. Lembro-me de ela perguntar, já perturbada, o
que é que estávamos a fazer em Lisboa, o que é que isso de ver a família tinha
a ver com o estarmos ali, se a família ia ter com a gente, enfim, um bombardeio
de perguntas irritadas.
Talvez ela estivesse aborrecida por pensar que ele a teria enganado, ou por saber que mesmo sendo questionado, se ele achasse que nós poderíamos ficar em perigo por saber, nada diria. E assim foi, ele olhou-a e apenas sorriu. O carro foi estacionado a uns bons dois quilómetros da baixa lisboeta. De aqui em diante a minha noção das horas desapareceu e ainda que pudesse complementar tudo isto com informações que os meus pais acrescentaram, prefiro não trair as minhas memórias, sensoriais, de criança.
Entrámos na cidade a pé. Levámos um pequeno saco com comida e pouco
mais. Íamos parando aqui e ali para descansar. O meu pai ia-me fazendo a visita
guiada, ia inventando histórias de monstros com inúmeras cabeças, de princesas
que cantavam o fado, de marinheiros que por engano descobriram caminhos para a
Lua, de sardinhas de ouro que iluminavam a cidade de noite com a luz que
acumulavam de dia, de pastéis de nata gigantes para onde se podia mergulhar,
enfim, o estapafúrdio que a paisagem urbana da capital lhe ia inspirando.
Devem ter passado horas, mas para mim foi rapidíssimo pois todo aquele
universo desconhecido (nunca tinha vindo a Portugal, nunca tinha visto uma
cidade como Lisboa) fazia a continuação da bizarra e inesquecível viagem
espacial que vínhamos a fazer desde que descobrira o mapa.
Para a minha mãe, contudo, os limites da paciência, perante o silêncio
informativo do marido, extravasaram.
“Basta! Não dou nem mais um passo. Tu estás cansado, eu estou cansada,
a tua filha está morta de cansaço, precisamos de comer uma sopa ou qualquer
coisa quentinha, precisamos de tomar um banho, de dormir umas horas numa cama.
Basta! Ou tu me dizes o que é que se passa ou não dou nem mais um passo.
Estamos a andar desde que o sol nasceu. Já passámos por aqui vinte vezes,
andamos às voltas, estou farta. Onde é que está a família que nós vínhamos ver?
Onde?”
O meu pai fez um (eterno) minuto de silêncio e depois disse com o seu
ar de turista na sua própria vida: “Querida, preciso, mais do que nunca, da tua
paciência, do teu carinho e dessa confiança que sempre em mim depositaste. Por
favor. Hoje vamos comer, dormir e tomar esse banho merecido de que falas, vamos
fazer tudo isso, sim, mas vamos fazê-lo já num Portugal diferente.”
Depois de ter ficado a olhar para ele meio embasbacada, a tentar perceber do que é que ele falava, ela respondeu-lhe quase a sussurrar: “O quê? Hoje? Vai acontecer hoje?” Neste momento eu percebi que a minha mãe também sabia de qualquer coisa. A conversa entre eles continuou, mas eu já não ouvi. A minha atenção virara-se para o fim da rua, de onde surgia uma multidão de braços erguidos e gritos em forma de palavras coletivas.
Lembro-me de ouvir o meu pai dizer à minha mãe, “Não é hoje, filha, é
agora. Acho que te podes virar para trás e ver a verdade de tudo o que me
faltava dizer-te.” A minha mãe virou-se para a multidão. Quando, alguns
momentos depois, olhei para os dois, choravam, mas sem expressão de choro,
imóveis, de boca aberta, apenas as lágrimas lhes caíam abundantemente pelo
rosto.
Parados que estávamos, petrificados pela torrente emocional que tudo
aquilo implicava, fomos engolidos pela multidão. Uma das primeiras pessoas a
aproximar-se foi um senhor, baixo e robusto, que, apesar dos pequenos braços,
nos abraçou com tamanha intensidade que nos fez, pela primeira vez, sentir
verdadeiramente parte de tudo aquilo.
Ele gritava e cantava, enquanto chorava e ria e tudo, tudo ao mesmo
tempo. “A guerra acabou. O meu filho vai voltar para casa. Os nossos filhos vão
voltar para casa.” e novamente “A guerra acabou. O meu filho vai voltar para
casa. Os nossos filhos vão voltar para casa.” e novamente… e novamente… Se
algum dia me tivesse tornado pintora, teria pintado o rosto deste homem (que
nunca consegui, nem quis esquecer) e teria chamado ao quadro simplesmente “O
homem mais feliz do mundo”. Nunca até hoje presenciei tão intenso
arrebatamento.
A partir daí só me recordo de andar de ombro em ombro, como se
fôssemos todos conhecidos de longa data e, claro, o vermelho. Não consigo
lembrar-me dos primeiros avermelhados na paisagem humana que me rodeava, só sei
que de repente havia cravos por todo o lado. Tinha-os no cabelo, no chapéu, na
camisa, nas calças e, volta e meia, alguém me passava uma mão cheia de cravos
para eu lançar à multidão.
As pessoas que celebravam na rua agarravam os cravos que eu lançava e acrescentavam à sua coleção mais um ou dois, ou voltavam a lançá-los. Andámos nisto horas infindáveis entre ruas e cada vez mais pessoas e cada vez mais pessoas. A fonte que jorrava vidas naquelas ruas de Lisboa parecia inesgotável.
Só anos mais tarde soube que uma senhora, perfeitamente anónima, teve
um gesto improvisado que foi o de pôr um cravo na ponta de uma espingarda de um
militar. Lembrou-se e fez. Assim, sem mais nada, o gesto pelo gesto, o momento
pelo momento, a simplicidade de um movimento ingénuo, mas sincero, honesto. Foi
lá e semeou um símbolo, talvez o mais forte de todos, o da esperança, o cravo.
A moda alastrou. Tornou-se epidémico. Rio-me nestas alturas dos planeamentos,
de tanta coisa pensada e estudada que por aí se desenvolve. Rio-me porque
aquele colocar do cravo foi a mais espontânea das ações que giraram à volta do
25 de Abril e, no entanto, será sempre (pelo que simboliza) a sua maior
bandeira.
O dia avançava, o sol começava a pôr-se, eu estava ao colo do meu pai,
a minha mãe encostada a ele, abraçando-o como que a apoiar-se, desfalecendo
lentamente, desgastados que estávamos de todo aquele turbilhão emotivo.
Do nada (absolutamente do nada) apareceu uma senhora com um vestido
verde alface que, sem nunca nos termos contactado, se aproximou da minha mãe e
lhe disse: “Filha, olhei para vocês e reparei que estão mortos de cansaço. A
minha casa é esta aqui, a da porta verde. Venham lá descansar, comer qualquer
coisa. O senhor (virou-se para o meu pai) se quiser ficar aqui no meio da
multidão, deixe-se estar. Está a ver ali a minha porta? Lá encontrará a sua
linda família. Ah, já agora, sou a Marta.” Pegou em mim ao colo, libertando o
meu pai do peso, e deu o braço à minha mãe, conduzindo-nos à sua humilde,
minúscula, mas imensa casinha.
Lá comemos, lavámo-nos e dormimos profundamente, de um só sono,
durante umas boas horas. Enquanto ainda comíamos uma sopa maravilhosa que nos
serviu, a minha mãe satisfez-lhe a curiosidade, contando-lhe a nossa aventura
desde que saíramos de Berlin há uns dias. Quando, finalmente, nos íamos deitar
no quarto que ela nos apontou, a minha mãe reparou que não havia outro quarto,
pois a sua casa resumia-se àquele, a uma casa de banho e a uma outra divisão
que era simultaneamente sala e cozinha. “Dona Marta, onde é que a senhora vai
dormir?”.
Fez-se silêncio.
Ela parou, olhou-a intensamente nos olhos (como que a pensar no que é
que iria dizer) e deixou correr tranquilamente umas lágrimas antes de
responder: “Minha linda, o meu filho morreu no Ultramar há 3 anos. O meu marido
desapareceu misteriosamente há muitos mais ainda. Dormir?... Eu?... Hoje?...
Nem pensar!
Se depender de mim nunca mais durmo. Já chega de torpores, quero viver
o pouco que me resta. Fui de propósito ao baú buscar este vestido colorido e
decidi hoje mesmo enterrar o luto que me acompanha há quase dez anos. Em nome
do meu marido, do meu filho e de todos as vítimas destes políticos de merda,
hoje quero celebrar a vida. Nunca me senti tão viva como neste dia maravilhoso.
Olhe, querida, quem correu o mundo para cá chegar foram vocês, não fui eu. Por
isso durmam, que vocês é que precisam, têm uma longa vida ainda pela frente,
precisam de forças.”
Quando eu e a minha mãe acordámos no dia seguinte, o meu pai e a avó
Marta (como todos a tratávamos) tomavam o pequeno-almoço na cozinha.
Olharam-nos com aquele sorriso que só os olhos conhecem e sentámo-nos todos à
mesa. Toda a noite aquelas duas almas andaram de um lado para o outro,
excitados pelo sonho acordado em que aquela cidade mergulhara. Falaram e
partilharam muito durante as horas de vigília e o meu pai ficou a saber coisas
dela que, infelizmente, levou consigo, deixando algum mistério a pairar sobre
ela.
Perante a insistência do meu pai em querer de qualquer forma agradecer
a extrema generosidade com que nos acolheu, a avó Marta sugeriu que
passássemos todos os anos (na altura que nos desse mais jeito) uma semana na
casa dela, ali mesmo onde tudo aconteceu. Prometemos de coração aberto que nos
deixaríamos adotar por ela.
Assim foi. Durante dezoito anos passámos anualmente uma semana na casa
da avó Marta. Deixou-nos em 1992, no dia 20 de dezembro, e apesar de já terem
passado quase trinta anos, ainda sinto falta daquela semaninha anual na casa da
avó Marta, da nossa querida avó Marta.
Ana do Rosário
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