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Crónica dos 5


Recebi hoje o resultado de uma consulta de descodificação que encomendei através de um grande amigo chamado Goncitro. Ele não é descodificador, mas conhece o meio.

Interessava-me uma abordagem energética menos flower power e mais universalizante. Há poucas organizações capazes de comentar detalhadamente os processos que aplicam. As explicações costumam andar sempre envolvidas em zonas de secretismo, descrições vagas, subjetivas. Porém, com o conhecimento do Goncitro, filho do mentor ideológico do NeoKardecismo, conseguimos contactar a organização certa, os Yama-GIP.

Há cinco meses encontrei-me pela última vez com o Valter Zuse Biningo.

O Valter decidiu assumir o apelido que lhe é por direito, reconhecido pelos Lendários, apesar de sentir alguma necessidade de se explicar, uma vez que, tirando o Valter e o seu vampai, nenhum outro Biningo anda pelo mundo à solta. Fá-lo também para afirmar a sua completa independência do seu vampai e reivindicar a possibilidade de um Biningo ser etnicamente livre.

O Valter pertence aos Biningos, uma derivação dos Vampiros de Chão (VC), uma estirpe tribal que ainda me era desconhecida. Nessa pequena sociedade territorialista, só o vampai, Crinto Delnhuc Biningo, pode abandonar a zona, a nenhum outro é permitida tal liberdade. O facto de esta variante não ter nome caraterizador e optar por designar todos os seus elementos pelo apelido do vampai, denota o lado submisso dos Biningos. Crinto nem permite que os seus descendentes atinjam autonomia cerebral.

Quando digo que o Valter me contactou pela última vez, faço-o porque, de acordo com o plano que elaborámos, está previsto que ele desapareça por uns tempos, justamente após este contacto. Pretendemos evitar que nos relacionem, que lhe descubram o paradeiro e que alguém possa suspeitar sequer do nosso projeto.

De qualquer forma, para ter as certezas absolutas que pretendemos, ainda vou demorar uns meses, se não anos. Tenho de contactar entidades de variada ordem para confirmar os dados que hoje tenho em minha posse, por isso estabelecemos um prazo de 10 anos para nos voltarmos a encontrar.

Por enquanto já tenho o que preciso para passar à fase seguinte.

Já tenho uma primeira, credível, descodificação das palavras, que implicou a tradução de um alfabeto dinâmico, não normativo. Outras terei de reunir, por contraste, de outros descodificadores.

Seguidamente, a interpretação cruzada dos múltiplos sentidos do texto demorará mais tempo.

Julgo, contudo, ter tudo claro como água em menos de um decénio.


O Valter (atribuo isso ao facto de nos conhecermos há pouco tempo) vê o meu título de Conde como um elemento distanciador e cerimonial, mesmo depois de lhe ter explicado que não pertenço a nenhuma linhagem, mas antes a uma nobreza individualista (que tem muito pouco a ver com estratificação social), anterior a qualquer noção conhecida de monarquia humana.

É claro que não me aprofundei na explicação de mim, apenas deixei bem claro que não precisa de me galantear como se faz habitualmente aos nobres por cá. No meu mundo ninguém é nobre porque os pais isto-ou-aquilo, não são títulos herdados. Desde Ottman que apenas se atribuem títulos por merecimento, o que faz uma enorme diferença. O facto de a atual corte de Don Alcro me ter reconhecido algum mérito não implica qualquer tipo de endeusamento.

Voltando ao Valter... desde a sua transformação que a revolta é o sentimento dominante na sua vida.

Conheci-o nos primeiros tempos da sua nova e, espero, longa existência. Sentimos, eu, a Patrícia e a Laura, as suas vibrações perturbadas. Entrámos em contacto com ele e cresceu-nos logo uma grande empatia. Mostrei-lhe alguns pedaços da nossa história vampírica comum e começámos a ver-nos com regularidade, até já o apresentámos ao Marcos Falhuc, um outro VC.

A sua grande e angustiante raiva é fruto de ele ter percebido que o seu processo transformador foi apenas o resultado de um capricho. O seu vampai procurava um documento que pensava que ele possuía e chegou à conclusão (apressada, superficial) de que ele não o tinha.

Houve afinal um ruído na comunicação. Afinal, ele tinha em sua posse o tal documento, só não sabia que o tinha.

O Valter, até um dia em que confronte Crinto, carrega este desnorte de não saber se a sua transformação foi intencional, ou um acidente. Ter sido um acaso parece-lhe o mais provável, não só pelo pouco rigor do seu vampai na intrusão telepática a que o sujeitou, mas também, segundo o que afirma saber, pelo facto de ser esta a primeira viagem ao mundo exterior de Delhnuc e de ele nem conhecer muito bem as extensões comportamentais do seu próprio vírus.

A Tena, ou os Lendários, dias após o seu renascimento vampírico, entraram em contacto com o Valter. Falaram com ele e explicaram-lhe o seu processo irreversível de transformação. Informaram-no do seu novo apelido virológico e contextualizaram-no na breve biografia da sua tribo, revelando-lhe a identidade do seu pai-vampiro, ou vampai, já informado da sua existência.


O seu desejo de vingança foi crescendo conforme foi interpretando leviandade e inconsistência no seu carrasco. Insiste o Valter que se ele quisesse muito o documento (ao ponto de o matar) teria aprofundado a intrusão telepática a que o sujeitou e tê-lo-ia encontrado.

Se ele tivesse feito uma pequena incursão controlada ao seu inconsciente ter-se-ia cruzado com o grafismo do texto. Foi justamente através de um processo de hipnose fotorrecuperadora, consolidado com a intervenção de uma GIP senegalesa, especializada na reconstrução de pistas em casos de invasão cerebral, que o Valter se apercebeu de que tinha o documento.

Crinto, porém, não fez qualquer tipo de aprofundamento, deixando o corpo morto do Valter abandonado como uma embalagem vazia que se joga fora, cumprida a sua função.

Ficou, portanto, abandonado à sua sorte, um Vampiro de Chão Biningo, sem razão nenhuma para se justificar vivo. Encontrou, na vingança ao seu vampai, o fundamento da sua existência.

Quando o Valter me detalhou a forma como foi invadido mentalmente pelo Crinto, o tipo de procura a que foi sujeito, e as evidências procuradas, percebi que tínhamos de conversar melhor.

Quando Os Lendários se encontraram com o Valter e o contextualizaram na história da sua família vampírica, contaram-lhe que Crinto é um vampiro renascido durante a Idade Média. Pertencente aos VC, um dos clãs da nova vaga, mas um dos mais influentes, Crinto, durante a inquisição, refugiu-se numa ilhota portuguesa, mal assinalada nos mapas, ao largo do continente africano.

O isolamento e o cruzamento com os locais, já por si peculiares, terá dado origem a esta variante de VC. Então Crinto contacta a Tena e faz um pacto de recriação virológica, reivindicando o reconhecimento do clã Biningo.

Nos seus estatutos, os Biningo trocam o racionalismo VC pela capacidade de influenciar os elementos da natureza e, na mesma senda de recuperação de tradições dos primeiros clãs ditatoriais, Biningo vai mais longe e, não só esteriliza toda a sua ninhada, sendo ele o único fértil, como só gera criaturas em tudo inferiores a si, completamente dependentes e submissas, sem nome próprio.

Rompe com a original estratégia de alimentação dos VC, optando pela primitiva teatralização sanguinária dos tempos de Nordoom.

Crinto recupera, ainda, dos tempos antigos, a tradição de dar missões aos clãs - aqui também contrariando os clássicos VC, que a rejeitaram. Assim, atribuiu aos Biningos a procura dos documentos que explicam A Génese, A Verdadeira. Já, então e certamente, com intenções obscuras, agora, de alguma forma, reveladas.


A missão de Crinto de certa maneira encalha com a da minha família, os Volada Fox.

O meu clã, os Nosgóticos, não tem nenhuma missão estatutária, como os Biningo. Porém, desde Kain, o nosso primeiro rei, que aos Volada Fox foi confiada a guarda da parte 1 do 5BYC (5 Billion Years Cronology) ou, como se chama vulgarmente em português, Crónica dos 5.

É, portanto, um documento que faz parte da história na nossa família. Desde que nos foi entregue em mão por Kain que nos treinamos para compreender os sinais.

Contam os mais antigos Volada Fox que Kain nos disse que um dia nos cruzaríamos com aquele ou aqueles que querem reunir os dois pedaços do 5BYC. Kain sabia que, algures, nos tempos por vir, os 2 pedaços se uniriam de novo para “completar um ciclo de sabedoria sem tempo”, no entanto, não tinha qualquer suspeita sobre quem seria o autor dessa junção e quais as suas intenções.

Passou-nos a informação do tipo de procura que se tem de fazer para que este documento se revele e é baseado nisso que nos temos treinado. Quando o Valter me descreveu o contacto que teve com Crinto apercebi-me imediatamente do que se tratava.

A angústia que Kain partilhou com os meus familiares foi a incerteza perante as intenções de quem possuir o documento completo, um poder incalculável de conhecimento. Faz, portanto, parte da nossa missão averiguar a integridade dos que vão dando passos suspeitos, por mais pequenos que sejam, até o dia em que encontrarmos aquele ou aqueles que serão dignos de receber o que guardamos.

Porém, também pode ser nossa função, pensamento muito discutido no meu seio familiar, a recuperação de outras partes do documento, caso as encontremos em mãos impróprias.

Desde o dia em que nos tornámos guardiões da parte 1 da Crónica dos 5, que nos vamos revezando fisicamente nessa missão de ocultar o documento, sendo que todos estamos, permanentemente, alerta. Durante os correntes 250 anos sou eu o responsável por esta tarefa.

A Crónica dos 5 é um texto muito antigo e obscuro, há grande dificuldade em datá-lo enquanto linguagem escrita (será muitíssimo mais anterior enquanto linguagem emocional, telepática e oral) e uma quase total impossibilidade em determinar-lhe autores.


Uma certa corrente gnóstica também tem andado no seu encalce e refere a nossa parte 1 da Crónica dos 5 como o primeiro do conjunto de fundamentações a que chama “A única lei”.

Trata-se de um documento complexo dividido em 2 partes.

Cada uma delas, por sua vez, subdivide-se noutros dois elementos: uma folha com um emaranhado de riscos e uma outra em formato de rede.

Quando sobrepostos, a visibilidade dos riscos limita-se aos espaços da rede, permitindo a identificação do que serão letras, ainda que completamente indecifráveis, dado o factor dinâmico do alfabeto utilizado, onde poucos sinais se repetem.

Sou guardião, portanto, do conjunto completo da parte 1, ou seja, a folha dos riscos e a folha-rede. Consigo sobrepô-los e aperceber-me de que estou, de facto, a olhar para um código.

Mesmo que conseguisse fazer um paralelo de letras, falta a parte 2 para o documento se completar. Pois em cada uma das partes só aparece metade de cada palavra.

A parte 2 da Crónica dos 5 também é composta por duas peças semelhantes: a folha riscada e a folha-rede.

Voltemos ao Valter para se perceber o percurso do documento.

De acordo com as informações que ele conseguiu da Tena, na ilha dos Samer (onde reside toda a comunidade Biningo), teria estado depositada a parte 2 completa da Crónica dos 5. Crinto tornara-se seu pessoal guardião ainda quando vivia em Portugal, tendo assumido a busca da parte 1 como missão de vida.

Acontece que, em 1939, numa viagem aparentemente turística, Konrad Zuse, pai do Valter e grande explorador do mundo e das ideias, terá conseguido desviar a folha-rede da parte 2 do 5BYC. Tornou ainda mais amarga a missão de Crinto.

Teria agora de recuperar a folha-rede da sua parte 2 e ainda continuar a procurar todo o conjunto da parte 1.

Tendo tido conhecimento do caso, convoquei uma reunião entre alguns membros dos Volada Fox e Os Lendários. O tema foi a integridade e a pertinência de Crinto Delnhuc Biningo.

Quando estamos a dar passos no sentido de estabelecer protocolos de convívio entre humanos e vampiros, movimento inspirado na corajosa Revolução dos Cozinheiros, duvidámos, por várias razões apresentadas, da capacidade de Crinto em contribuir para esta tendência, integrando o seu clã nela.

Aliás, a animalização da sua própria descendência é prova incontornável das suas tendências contrárias.

Concordámos que a sua posse do documento inteiro causava preocupação.


Aprofundando o lado egocêntrico de Delnhuc, sabemos que só este roubo o fez sair da ilha dos Samer. De acordo com o que Os Lendários nos contaram na reunião, ele não pretendia sair da ilha nos próximos dois milénios, o tempo por ele anunciado como o necessário à subjugação coletiva que pretendia. A fragilização cognitiva do seu clã, conseguida no tal período de 2000 anos, permitirá a criação de um canal unilateral de comunicação telepática, transformando o vampai na única criatura pensante de toda a ninhada. Uma só cabeça, todo um clã como extensão executiva do seu pensamento.

Nunca um vampiro tentou tal façanha e a consegui-lo tornar-se-á, sem dúvida, num dos mais poderosos de sempre. Se, além disso, chegasse a possuir a Crónica dos 5 completa, podia haver um grave desequilíbrio na harmonia de forças que reina no nosso submundo.

Imagino que Crinto tenha investigado a morte e descendência de Konrad Zuse, até chegar ao Valter. Como o Valter foi apenas uma pista e se calhar nem tinha muita confiança nela, rapidamente se desinteressou, apesar de já o ter assassinado. O Valter ter renascido VC foi, a julgar ao que parece, um imprevisto. É este descartar da vida que o Valter não lhe perdoa.

Afinal Crinto só não descobriu que ele tinha o documento porque nem este sabia que o tinha. O Valter e as irmãs, em noite natalícia, abriram uma certa caixa dourada e descobriram o espólio epistolar do pai. Pouco tempo depois esta passaria a ser gerida pela UNP, mas, antes disso, o Valter decidiu guardar 5 ou 6 para ele, como recordação – o critério de seleção que usou foi apenas a beleza dos envelopes.

Chegou a abri-los, mas, principalmente este, por estar apresentado num enigma, ficou adiado para uma altura em que a decifração lhe apetecesse.

Acabou esquecido no fundo de uma gaveta.

Só com ajuda especializada, o Valter conseguiu reconstituir as suas memórias e encontrar o que Crinto andava à procura.


Há aproximadamente cinco meses tive então a rapidíssima e última reunião com o Valter. Despediu-se até dali a dez anos e, antes de se desfazer em pó e me desaparecer no chão da sala, deixou comigo um envelope com a parte 2 da Crónica dos 5.

Dentro estava a folha-rede que o pai de Zuse trouxera da ilha dos Samer (e que o Valter tinha consigo) e a folha riscada de que Crinto era guardião.

Não me disse como conseguiu a folha riscada, apenas a deixou.

- Até daqui a dez anos... passa num instante.

Tenho, portanto, em minha posse, pela primeira vez desde que foi escrito, o conjunto completo.

A reunião que tivemos com Os Lendários deu-nos força para avançar com o projeto de retirar a parte 2 da Crónica dos 5 a quem dela fosse indigno. As tendências nitidamente imperialistas de Crinto afunilaram a decisão.

Depois de ter montado o conjunto e de ter reparado como, numa certa posição, os 4 pedaços fazem sobressair o que parece ser um texto, enviei-o ao meu amigo Goncitro para uma descodificação séria.

Não posso deixar de frisar que o que tenho comigo é uma proposta de tradução das palavras de um texto. Não é a sua interpretação. Aí teremos de percorrer outros caminhos, mas daqui a 10 anos, quando me reencontrar com o Valter, conto já ter tudo em pratos limpos.

Não é um texto muito extenso, por isso, para aqui o copio.

Pelo título sempre pensei, durante este tempo todo, que seria uma cronologia que durasse 5 biliões de anos.

Agora acho que já percebi o nome: trata-se de uma cronologia do universo, em etapas com 5 biliões de anos cada.

(O facto de o último ponto não corresponder a esta ordem pentabilionária, também pode estar relacionado com o facto de ter sido acrescentado ao original, ainda antes da sua dispersão, como sugere o tradutor.)

Está escrito como que a contar uma história e tem nomes de personagens que navegam num universo factual simbólico e de certa forma alegórico.


Incluo também, porque me parece importante, a carta introdutória do tradutor-descodificador:

“Caro amigo, a dificuldade em assumir certo vocabulário como decifrado ou traduzido, fez-me recorrer a algum design ortográfico funcional. Deste modo atualizei para o nosso linguajar a forma de entender a linguagem, presente no texto original. Se o não fizesse corria o risco de transformar um texto codificado noutro semelhante, que me parece não ser o que pretende.

Atualizei as datas dos pontos, em conformidade com o datar atual.

Em termos comparativos à oficial noção de evolução cósmica, arrisco, na interpretação das palavras, o estabelecimento de dois paralelos: o ponto 5 será o Big Bang e o ponto 8 corresponde ao momento em que um corpo celeste embate no planeta Terra, no momento histórico entendido como determinante para a extinção dos dinossauros.

Devo referir que, a partir do ponto 6, as ideias aparecem escritas de forma menos antiga, porém ainda suficientemente nublada para não se conseguir traduzir à letra com clareza. Pelo vocabulário conseguimos perceber algumas repetições e menos elementos aleatórios, denotando a experiência da repetição adotada, sinal claro de evolução na escrita, logo, datada posteriormente ao restante documento.

Será interessante um estudo paralelo de datação antropolinguística, para percebermos a partir de quando a evolução do cérebro humano passou a permitir um certo tipo de raciocínio escrito.

Cito um artigo de 1995 do grupo AVA, no livro “Evolução Controlada”, sobre a Crónica dos 5:

“São bastantes e de mui dispersos locais do mundo as inúmeras tradições mitológicas primitivas que referem que a Crónica dos 5 tem duas fases da sua existência conhecida: na primeira é escrita, reescrita até atingir a perfeição; na segunda é dispersa para que nunca se saiba a verdade, para que, como se diz em Tuvalu, “não desperte a desilusão que o conhecimento da verdade provoca.”


PONTO 1 - há 35 biliões de anos

Ariovaldo dormia um sono longo em uníssono.

Em expansão de sonho, o fluido uno impeliu Ariovaldo a sonhar-se tripartido.

Três pilares de uma entidade só.

Um tudo. Um sonho. Três sonhos.

Ainda que mantendo a sua total passividade, o desdobramento singularizou domínios nomeados e o sonho deixou de ser efémero.

Ariovaldo nem acordou, coube-lhe o espaço.

Nasce Cremilde como primeiro desdobramento do sonho e com ela vem o tempo.

Passa o tempo, mas o espaço não vibra.

Eis quando Ariovaldo e Cremilde sonham um sonho só e nele Adosinda introduz o movimento.

A vibração.


PONTO 2 - há 30 biliões de anos.

No sono do Ariovaldo individualizado, o guardião do espaço, compreende-se uma galáxia estática. Todos os corpos que a compõem são o mesmo. Parado na imensidão do todo que só ele é, apenas a consciência da sua existência lhe permite compreender a sua própria extensão, muito para além dos números e das formas de medir.

No todo de Ariovaldo, um novo Ariovaldo restrito, uma Cremilde tranquila e uma Adosinda inativa, em tentativas de compreensão num processo de observação à capacidade expansiva do todo que Ariovaldo ainda é.

O sonho consciente de si, a procura de definição...

tudo em potência.


PONTO 3 - há 25 biliões de anos.

Adosinda aproximou-se de Ariovaldo, fazendo flutuar a consciência em movimento.

Em cascata de processos, do invisível ao incontornável, Adosinda deixou que se entranhasse no volume sem parcelas que Ariovaldo, ainda que subdividido de si, mantém de forma passiva.

Ainda sem processos temporais, passou a dupla Ariovaldo e Adosinda a tomar diferentes consciências da sua própria localização.

Solidificou-se a noção de existência física e das diferenças ocorridas nesse processo expansionista, mas sem a perceção do processo.

O derramamento nuclear encontra-se numa encruzilhada de mundos possíveis, estabelecendo ruturas e reformações.

A emergência de identidades é anulada pela não necessidade de identificar, elevando a centro cósmico o turbilhão da totalidade existente, não planificada e não planificável.


PONTO 4 - há 20 biliões de anos.

Cremilde despertou e com ela a noção de tempo.

Nasceu o plano e a consciência.

Foram-se experimentando fórmulas em como o movimento e o tempo se concretizaram numa realidade etérea, de pensamento e envolvimento emocional.

O movimento e o espaço geraram, por sua vez, naturalidade, memória e a multiplicação individualizante dos singulares.

Com o nascimento da previsão, nasce também a noção de causa e consequência, porém mantendo uma manta de introspeção curiosa, não determinista.


PONTO 5 - há 15 biliões de anos

A experimentação a três ocasionou inúmeras contradições moleculares, resolvidas com explosões reconstrutivas. Estas contradições gerariam um padrão de consenso atómico, no qual o trio se dilatou na imensidão incontrolável de tudo o que existe. A sintaxe de cada universo. Todos os universos.

Nasce o Desconhecido Inimaginável, a concretização de que a realidade supera largamente as possibilidades criativas cerebrais.

Nada está definido e tudo pode ser decidido.

Nada está decidido, nem que rumo seguir.

Em convulsão interna, o trio define-se.


PONTO 6 - há 10 biliões de anos

Um acidente cósmico, em jeito de ímpeto existencial, projetou um naco de Adosinda pelo vácuo.

O movimento que gera vida.

O sonho de um planeta emergente leva Adosinda à deriva do seu realizar, reunindo, na viagem, todo o saber que acumula das circunstâncias do roteiro.

No seu encalce vai também um pouco de Cremilde, para temporizar, suavizando os estares irrealistas de Adosinda em tudo fecundar.


PONTO 7 - há 5 biliões de anos

Adosinda encontra um planeta com rota irregular e embate nele, regularizando o seu papel no sistema em que se encontra.

Um leve desvio de rota acidenta a chegada de Adosinda, que projeta uma parte estéril de si, apanhada, porém, num força de dança que a mantém perto.

Leva consigo o conhecimento do acumular da viagem, deixando que, no solo, todo o seu eu se derrame, tomando posse do novo astro, em tudo capaz de a pluralizar.

Nascem os que provocarão o nascimento de outros e outros.


PONTO 8 - há 65 milhões de anos

Cremilde encontra o rasto de Adosinda, provocando um embate no mesmo astro onde esta se fixou. O tempo excessivo levado na sua procura impediu a aniquilação total do já brotado.

O legado de Adosinda é reformulado, mas não é apagado do cosmos e as multiplicações generosas da paz conseguida fazem vibrar o todo rochoso.




Adeus
Conde Volada Fox

 


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