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O sublime solitário

 


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Olá, minha querida filha

Antes que tudo, espero-te bem.

Tenho pensado muito em ti, meu anjo e, do tanto que teria para te contar, sabendo dessa tua curiosidade fervilhante, prevejo logo os teus olhinhos a brilhar, cheios de atenção e adrenalina. Imagino, com frequência, falar-te de tudo isto num dos nossos serões não tecnológicos (como tu lhes chamavas) em que desligávamos todos os aparelhos e ficávamos a conversar até nos cair o queixo (expressão da tua querida mãezinha, a quem saúdo grandemente). A saudade de ti, que me avassala, transformaria em sonho realizado a concretização desse momento em que partilharia contigo os detalhes mais detalhados desta minha aventura.

Porém, como a certeza de te reencontrar se esvai num manto de dificuldades e talvez até já nem esteja vivo quando receberes estas palavras (ou, pelo menos, vivo da forma como me conheces), decidi escrever-te.

No estado em que me encontro ainda me restam algumas forças para elaborar esta carta, no entanto são cada vez menos e menores os momentos em que me sinto lúcido, em que consigo pensar com a clareza com que me identificas. A nuvem que me absorve a mente ocupa cada vez mais o meu lugar no mundo e eu sinto-me num partir sem volta para o meu próprio e derradeiro esquecimento.

Apesar da fatalidade que se cruzou comigo nesta encruzilhada de interrogações e anseios, apesar de sentir que estou a fazer uma despedida da minha própria biografia e apesar de saber que com esta metamorfose deixarei de estar com todas as pessoas que sempre me fizeram sentir o aconchego do mundo, não consigo escapar deste destino sorumbático, que tanto receio como me atrai.

Lamento tudo o que ficará para trás (e neste “tudo” penso em ti, na minha querida esposa, tua mãe, e nos nossos amigos e familiares mais próximos), mas, aceitando o percurso que, de alguma forma, fui eu que tracei, espero que me perdoes a rutura, por saberes que esta necessidade que me acompanha de me testar até aos limites é como um animal selvagem que nunca consegui domar. Sou assim, sempre fui.


 

Tudo começou na inauguração faustosa daquela agência de viagens, ali mesmo, na rua onde morávamos. É provável que não te lembres, para ti foi um episódio fugaz, por isso reavivo-te alguns detalhes.

Passavam poucos dias do reveillon. Fazia muito frio e, apesar de alguma bonança nos dias anteriores, naquele choveu torrencialmente e o vento não descansou um segundo. Fomos agasalhados e tu levavas um gorrinho de orelhas colorido que a tua tia Regina te oferecera nesse natal. A tua mãe não lhe apetecia enfrentar o inverno medonho com que a rua nos presenteava e, não fora a minha inconsequente insistência, que eu lamento, teríamos abortado o projeto.

Lá fomos. A loja era espaçosa, mas não tanto para albergar o mar de gente que ali se reuniu: parceiros, amigos e familiares, potenciais clientes ou apenas curiosos (como era o nosso caso). Por estarmos todos um bocado apertados, tu sentiste-te mal e a mãe apanhou o pretexto e acabou por regressar a casa e levar-te. Assim como vocês, muita gente abandonou a loja na primeira hora, deixando aos resistentes (como eu) a possibilidade de, realmente, fruir o espaço.

Houve, então, um breve discurso sobre as especificidades do negócio e ficámos a saber que ali encontraríamos o previsível de uma agência de viagens, mas também “a satisfação de outros públicos, outros desejos de realização, outras viagens”, assim se lia num panfleto que nos foi distribuído.

Fiquei, obviamente (sabes como é que eu sou), intrigado com as misteriosas palavras da apresentação de tal catálogo alternativo e acabei por decidir aguentar-me mais tempo para ver se conseguia compreender melhor as extensões deste projeto.

O beberete foi aberto ao público e os funcionários da casa fizeram questão de cumprimentar individualmente cada um dos presentes, cumprimento caloroso e tão insinuado que o esmero da etiqueta até me pareceu um bocadinho ridículo. Eles próprios pareciam bonecos, dentes perfeitíssimos, penteados semelhantes, roupa moderna mas uniformemente formal.

Pouco tempo depois começou a atuação de uma banda local de metal extremo, extremo não, extremíssimo, os Animalesco O Método (AOM), que fez com que, durante o concerto (que durou uns 45 minutos), não se conseguisse falar e reduzisse ainda mais o público presente na inauguração. Fiquei fascinado pela banda, sabes que eu sempre gostei de música que não nos deixe indiferentes.

 

 

Éramos pouco mais de uma dezena os visitantes que, no final do concerto dos AOM, ainda se encontravam no local e, quando já me tinha habituado a esta ideia de que todo o staff teria a aparência de uma atuação dos Kraftwerk, entra na sala a mentora e coordenadora de todo o projeto, singular e extravagante.

Toda ela se expandia pelos recantos da loja. Os seus movimentos engrandeciam o farto cabelo multicolorido e desgrenhado, em contraste com o vestido negro e justo que finalizava numa pequena cauda lilás, que era também a cor dos lábios, no seu rosto moreno e fino. Óculos escuros e redondos.

“Muito obrigado por terem vindo. A atmosfera hoje trouxe-nos o dilúvio, nesta circunstância de nos lembrar que o inverno pode ser cruel e fustigador. Porém, pela convicção que exige, permite selecionar os verdadeiramente interessados, aqueles que os meus olhos confirmam pela permanência, vocês.

Vejo-vos e sinto que o querer ir mais além vos está no pensamento, nessa sede de saber que ainda vos e nos faz vibrar.

Já de seguida e individualmente, porque assim funcionaremos sempre, cada um dos presentes conhecerá a possibilidade que temos em cima da mesa para este ano, no nosso programa de TMA (Turismo Místico Anual). Mas não se assustem com a palavra Místico. Aperceber-se-ão de que a usamos apenas como um arquissignicante, sempre que vos quisermos levar ao mundo real, aquele que o mundo oficial não pode ou não quer confirmar.”

Como imaginarás, fiquei nervosíssimo de excitação com estas palavras e foi nesse preciso momento que tive, como primeiro sinal ou aviso, uma sensação para mim inédita, inaudita e muito, muito ambígua. Queria movimentar-me em direção a uma secretária que me fora indicada por uma funcionária, mas, não só o meu corpo reagia com tonturas e tremores, como nos meus pensamentos o abismo e a vertigem do medo se transformavam no único caminho possível, indesejado, mas inevitável. Como se o terror pelo escuro lutasse contra o próprio ato de acender a luz, um medo que não quer deixar de o ser, que se quer afirmar, mas como se o não fosse.



A tua mãe ficou bastante incomodada, não só com o meu relato entusiasmado de toda a inauguração, mas principalmente com a minha descrição da misteriosa proposta de TMA que a agência oferecia. Não queria nem ouvir falar do assunto. Em função da sua legítima e irredutível oposição, resolvi deixá-la tranquila e não vos envolver.

O meu trabalho no escritório obrigava-me, constantemente, a dilatar os horários de trabalho, pelo que as minhas idas à agência para aprofundar a proposta de TMA não levantaram quaisquer suspeitas em casa. Como a viagem que era proposta seria de “apenas um dia, mas a valer uma vida” (palavras da Susana, a funcionária que me acompanhou), achei que conseguia fazer tudo secretamente. No regresso traria muitas histórias para vos contar e teria evitado preocupações desnecessárias, assim o pensei.

De noite para noite, porém, entre sonhos caóticos e intensos e horas de insónias perturbadoras, crescia em mim um formigueiro inebriante, uma certa excitação tão intensa que me esgotava, deixando-me anestesiado para o quotidiano. Nos dias imediatamente anteriores à viagem dei por mim, várias vezes, parado no meio do corredor do escritório sem saber que direção tomar. Em simultâneo, uma estranha e injustificável sensação de tranquilidade apoderava-se de mim, aos poucos, mas, sabes, uma daquelas tranquilidades pré-tempestade, densas e inquietantes.

Só na quinta reunião que tive com a Susana é que confirmei que só o meu cérebro iria viajar, o meu corpo ficaria conservado e seguro nas instalações da própria agência. A viagem duraria 22 horas e 15 minutos em contagem oficial (que na linguagem da WAR é o Tempo Alheio), mas eu estaria aproximadamente 12 dias no local em tempo cerebral  (referido neste linguajar técnico como Tempo do Sujeito).

A agência é, afinal, uma filial da WAR (World Alternative Reality), uma instituição que, recusando o conhecimento oficial, se dedica à conceção de mapas (e complementar documentação) baseados em dados não reconhecidos pelo status quo intelectual. Antes da sua atual designação, a WAR surge no final da década de 1970 com o nome Edmond Halley Foundation (EHF), dedicada à memória do astrónomo e matemático que, recuperando saberes muito antigos, avançou com a hipótese científica da existência de mundos intraterrestres, a teoria da Terra Oca. Ficaria, porém, mais conhecido pela descoberta da trajetória do cometa que lhe levaria o apelido, o cometa Halley.

 

 

Em 2003, por questões de “atualização do discurso”, provocada por um desfasamento cada vez maior das próprias afirmações iniciais da fundação e por alguma reorientação ideológica, a EHF passa a WAR e desloca todo o seu equipamento para perto de Hallormsstadhur, na Islândia, onde ainda hoje se mantém.

Desde o rebranding que a WAR tem continuado a dedicar-se à cartografia de variadíssimas realidades alternativas, entre as quais o submundo, os universos intraterrestres; adicionando, ao seu campo de ação, as suas próprias agências (como esta da nossa rua) a promover viagens a esses mesmos mundos interiores, o tal TMA.

Um desses mapas da WAR está na origem desta viagem e refere-se a uma das galerias subterrâneas do mundo vampírico, nomeadamente à caverna Nosgoth, sede de um reino com o mesmo nome, o reino dos vampiros nosgóticos, atualmente governado por Don Alcro, o rei deste clã de vampiros. (Há muitos outros, ao que parece.)

No projeto que me foi apresentado eu passaria a maior parte do tempo num apartamento no principal observatório da cidade, o Bastião, uma estrutura móvel suspensa dos tetos da caverna, a operar mesmo no centro da capital de Nosgoth, Malek, o que me permitiria acompanhar de forma privilegiada, através de um complexo sistema de câmaras e de uma diária mudança de localização, o quotidiano dos vampiros nosgóticos. Por questões de segurança (os vampiros são antropofágicos, convém não esquecer!) só poderia sair do Bastião com escolta e guia autorizado.

À medida que me ia apercebendo dos detalhes associados à viagem ao mundo dos vampiros, como imaginarás, mais me ia entusiasmando. No entanto nunca senti uma alegria plena neste projeto surrealista de confirmar com os meus próprios olhos os mitos de sempre. Em teoria e conhecendo-me, eu deveria ter ficado em perfeito delírio. Eu ia confirmar a existência de vampiros. Vampiros... imagina tu. Espetacular! Ia confirmar que aquelas criaturas que a gente acompanha pelos filmes e livros e que até tu conheces daqueles desenhos animados do VampiBoy (uns com uma família de vampiros que, provavelmente, ainda vês de vez em quando), afinal existem e eu até os ia visitar. Mas não... em vez do estar festivo que me estaria previsto vinha-me amiúde um sabor amargo à boca quando pensava seriamente no assunto, o mesmo que provavelmente sentem os que, mesmo com proteção garantida, sabem que vão nadar com tubarões.

O dia aproximou-se e, aproveitando uma formação (de 3 dias) que tive de frequentar em Portimão, disse-vos que a mesma durava 4. Regressei, então, na madrugada do 4º dia, cedinho, escondi o carro atrás do escritório e fui a pé, cuidadosamente, à agência. Até aqui tudo bem.

À hora marcada, 9 em ponto, sentei-me num sofá-cama e bebi o que me foi apresentado como um chá “cirurgicamente alterado” que me fez perder os sentidos. Quando despertei estava no quarto de hóspedes do Bastião de Malek, como suposto.

 

 

Antes da partida, numa das muitas reuniões na agência, vira imagens do local, pelo que identifiquei imediatamente as vistas, as imensas redes a pender do céu da gruta, de nuvens psicadélicas de condensação, apenas rasgadas pelos rastos luminosos dos próltios, fauna local. Os edifícios em dois níveis: os mais altos, monocromáticos, majestosos e brilhantes, com pináculos de kms de altura e recheados de figuras demoníacas; ao fundo, amontoados de pequenas casas multicolores e sem qualquer harmonia de bairro.

Da janela do quarto ainda se conseguiam ver ao longe as famosas quintas de humanos criadas por Ottman, o segundo rei vampiro nosgótico. Chamam-lhes humanos porque nutricionalmente nos substituem, mas correspondem a uma variante que não foi estimulada a evoluir, criada como gado, que explicaria a evolução do Homo habilis para o Homo erectus e a que os pensadores da WAR chamam Homo tristan, em homenagem ao descobridor português Tristão da Cunha.

Em 1506 Tristão da Cunha navegava pelo sul do Oceano Atlântico quando descobre, por acaso, uma ilha que acabaria por ser batizada com o seu próprio nome e onde, dizem os documentos, não terá conseguido atracar devido à existência de penhascos com mais de 600 metros de altura.

No início do séc XX, escavações na mesma ilha põem a descoberto ossadas de hominídeos, as mais antigas com dois milhões de anos, todos com uma particular marca circular no topo do crânio. Quando as imagens da descoberta foram espalhadas pelo mundo, alguém reparou que no túmulo de Tristão da Cunha, em Olhalvo (Alenquer), mais propriamente no convento de Nossa Senhora da Encarnação, no segmento que retrata as virtuosas viagens do defunto, entre outros objetos, encontrava-se uma caveira exatamente com a mesma marca circular no topo do crânio.

Investigações concluíram que a informação da caveira teria sido retirada de uma pintura da época, onde Tristão da Cunha posava ao lado dos seus maiores triunfos: uma pedra preciosa, uma pena de uma ave, uma coroa real e a referida caveira - os mesmos retratados no túmulo.

Na tese da WAR, Tristão da Cunha esteve mesmo na ilha e terá descoberto qualquer coisa de tal forma perturbadora que a não quis ou não pôde divulgar, daí ter preferido declarar que não conseguira atracar.

  

 

O facto de só ter havido até hoje dois contactos documentados com esta variante humana, as escavações e a pintura de Tristão da Cunha, faz do nosso navegador a pessoa mais antiga a saber da existência desta estirpe sendo, por isso, homenageado na nomeação do Homo tristan.

Aprofundando o tema, descobri que o Homo tristan, fruto de alguma deriva marítima, voluntária ou acidental, terá chegado a esta ilha longe de tudo, onde permaneceu isolado durante milénios. No seu parco ecossistema foi encontrando subsistência, mas, dada a escassez de recursos, o grupo nunca terá atingido números elevados. Foi desta mesma comunidade que Ottman, há aproximadamente oito mil anos, raptou os elementos mais férteis para o seu eficaz e visionário plano alimentar, as quintas de humanos. Com o desfalque populacional, provocado por Ottman, os restantes definharam até à extinção, desaparecendo o Homo tristan da superfície do planeta, mantendo-se vivo até hoje no submundo.

 Além da paisagem arrebatadora, a tenebrosa decoração do apartamento onde acordei parecia não ser fixa, mas com pequenos deslizares e variações na tonalidade. Estas subtis alterações dos objetos, principalmente dos que se encontravam nas paredes, pareciam acompanhar os meus movimentos no quarto, como se um qualquer sensor os fosse reposicionado em sintonia comigo.

Do exterior consegui confirmar a esperada luminosidade inalterada, típica dos mundos intraterrestres, onde nunca é de noite e onde os seus habitantes descansam quando precisam, não a horas marcadas como nós. A permanência da luminosidade, porém, tornou-se um pequeno obstáculo ao meu descanso. Lembras-te certamente de como era o quarto do pai e da mãe, completamente fechado à luz, sendo eu o principal motor dessa escuridão, sem a qual sempre tive dificuldade em adormecer. Pois aqui as paredes eram janelas e nada havia com que as pudesse cobrir, a modos que o meu estado de vigília, por falta do tal descanso que só o escuro me proporciona, começou-me a confundir o raciocínio e a instaurar em mim a paranoia de que quem estava a ser observado era eu.


 

Devido à impossibilidade de alterar a inalterada luz do quarto, a não ter qualquer tipo de relógio e à confusão mental que o sono insuficiente me vinha provocando, perdi a noção dos dias.

A certa altura entraram dois vampiros no quarto. Bem vestidos, roupa de nobreza, cheia de folhos e ilustrações, manto, muito altos e de uma tez branca, quase neve.

Num português perfeito convidaram-me a acompanhá-los. Assim o fiz. No caminho, um corredor-ponte com uma arcada fechada a vidro, luminoso, foi-se apoderando de mim uma inconsciência física, como se o meu corpo agisse sem a minha vontade.

Chegámos então a um templo com uma gigantesca escultura de um demónio negro ao fundo. Ao centro, uma mesa redonda para a qual fui convidado a ocupar o único lugar vazio. Quando me sentei, o meu corpo parecia escorrer-me pelo assento e os meus olhos faziam ondulantes variações entre o berrante e o preto e branco, o que me embalava o cérebro. Tudo me parecia ondulado.

Alguém falou, falou comigo diretamente, em voz grave e com eco, que inauguravam uma nova era na relação entre os humanos e os vampiros e que depositavam esperança na pessoa que eu era para ser um dos pioneiros, por isso fora selecionado dentre muitos.

Fez-se um silêncio constrangedor, principalmente porque estavam todos a olhar para mim. Apesar da minha confusão mental, ainda consegui alguma lucidez para dizer que devia haver algum equívoco, pois a minha presença ali era meramente turística.

Após alguns minutos de silêncio, outra voz, mais perto de mim, explicou-me que a perscrutação que tinham feito à minha biografia de projetos, desejos e sonhos dizia o contrário. Que o meu desejo de eternidade pelo presente me tinha empurrado, ao longo da vida, para as mais radicais decisões e que, apesar de a minha racionalidade e o meu receio me impedirem de ver com clareza as minhas verdadeiras necessidades, elas seriam satisfeitas. (Ainda hoje não percebi o que é que ele quis dizer com "o meu desejo de eternidade pelo presente”.)

Então, um dos vampiros que me acompanhou desde o quarto veio por trás e, calma mas vigorosamente, abraçou-me com o seu manto. Uma nuvem alaranjada cresceu no seu interior, como se o manto a produzisse, envolvendo-me a adormecendo-me. O seu rosto aproximou-se então de mim e, antes de perder os sentidos, senti o que poderia ter sido um beijo no pescoço, não fora a pinga de sangue que ainda vi escorrer-me pelo peito.

Quando recuperei os sentidos já estava na agência de viagens.


 

Despertar na agência foi um momento desorientador, porque não sabia exatamente em que realidade me encontrava, dada a perturbadora experiência da viagem. O contrato estabelecido naturalmente à nascença entre o meu corpo e a minha vontade, ou a ilusão da minha vontade, parecia estar à beira de um ataque de nervos, às portas da falência.

Após alguns esclarecimentos da própria agência, acedi, então, ao acordar definitivo e regressei a este universo de realidades no real multiverso em que, afinal, parece que o mundo assenta. As explicações que recebi estiveram de acordo com a minha nublada necessidade informativa, ou seja, nem eu sabia muito bem o que queria saber, nem sabia sequer se queira saber alguma coisa, a modos que pouco discernimento tive para fazer perguntas e, consequentemente, para obter respostas.

Estive pouco tempo na agência e logo saí em direção a casa. Era de noite, havia pouca gente na rua e caía uma chuva miudinha que mais parecia nevoeiro, os sons da vida exponenciados, as cores cénicas em ebulição e os cheiros, os cheiros intensificados de forma tal que parecia estar a navegar de continente em continente nos poucos passos que dei entre a agência e a nossa casa.

Arrastei o corpo até à porta, mas detive-me quando, através da janela da cozinha, vos observei e senti a perfeição daquele cenário familiar, onde a harmonia e o calor da vida interagiam num quadro idílico.  Não consegui subir os degraus que me separavam da porta e de nós. A agonia dos meus tremores físicos bloqueou-me os movimentos e senti como uma infâmia a minha tentativa de vos perturbar, os maiores orgulhos da minha vida.

Dei meia volta e, sem delinear um rumo, desci a avenida.

O adensar da noite aterrorizava-me os passos num abraço que me envolvia o corpo todo. Senti muito o medo do desnorte, mas uma ainda maior incapacidade em rejeitá-lo.

Aproximaram-se três pessoas. Apaguei. 

Pela posição da lua cheia nas árvores do jardim do lago, aquele ao pé da casa da tua amiga Sofia, devem ter passado umas duas horas quando voltei a mim. Acordei de repente, como se tivesse usado um despertador, e senti um vigor no corpo como nunca tinha experimentado. Com extrema facilidade me levantei e os meus olhos rapidamente fixaram um cenário de horror.


 

As pessoas que me lembro de ter visto antes de perder os sentidos encontravam-se despedaçadas e os meus olhos conseguiram identificar detalhes minuciosos nesse quadro que ficava ainda a uns bons 50 metros dali. Cheirei então o sangue dos seus corpos como se lá estivesse. Os meus sentidos permitiam-me identificar ínfimos movimentos e cheiros e sons a distâncias humanamente inconcebíveis.

Numa mecanização sensorial, foquei-me em mim próprio e, aterrorizado, cheirei na minha roupa o mesmo sangue dos corpos ao fundo da rua.

Entrei em pânico. Corri de forma, espantosamente, veloz em direção a zonas da cidade onde não houvesse habitações, desertas à noite e consegui não me cruzar com ninguém.

Porém, quando alucinado seguia na minha errante caminhada e passava, justamente, naquela rua que são só muros, sabes, aquela na traseira das fábricas de conservas, onde não dá para nos escondermos em lado nenhum, passou um carro. Parou para me perguntar qualquer coisa, nem sei bem o que foi.

O odor a carne viva e sangue quente enrolou-me num torpor, um formigueiro que me foi tomando, ocupando, eliminando a minha vontade. Senti-me forte, invencível, insaciável, depois deixei de ser eu e a minha memória não ficou com a mínima informação que me esclarecesse, salvo as provas irrefutáveis, quando a mim regressei, da agressividade mortal do meu outro eu... e de mais uma vítima, de já muitas.

Dia após dia, como já te referi no início desta carta, reconheço que sou cada vez menos eu, cada vez menos humano. Paralelamente, enquanto me sinto a definhar de mim (e comigo) vou tendo uma memória cada vez mais clara dessas circunstâncias em que não consigo controlar os, agora também meus, instintos implacáveis de predador.

Há, portanto, um contínuo que se vai interligando e a fronteira em que, ainda assim, ainda me compreendo vai-se diluindo nessa fusão de entidades. Já não sei bem quem sou.

Neste momento, minha querida, a confusão na minha cabeça já até me impede de, com clareza, lamentar esta maldição, sentindo-me, cada vez mais, tentado a encará-la como uma nova parte de mim, legitimada pela relatividade deste impensável que se me vai tornando rotina.

Vou-me embrenhar no mato e fugir para o ponto mais longínquo que o ainda eu for capaz de alcançar. Vou-me perder no mundo. Considerando esta animalesca e galopante mutação que me recria, espero, sincera e dolorosamente, que os nossos caminhos jamais se voltem a cruzar, em nome da longa vida que desejo muito que ainda tenhas pela frente.

 

Assim me despeço

Um beijinho

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